O que é Patrimônio de Afetação Rural?

Lei 13.986/2020: o patrimônio rural em afetação e suas repercussões no Registro de Imóveis

 

Carla Modina Ferrari

 

A Lei 13.986, de 07 de abril de 2020, conhecida como Lei do Agro, modificou significativamente as disposições referentes às cédulas de crédito rural, bem como manteve, com algumas inovações, a figura do “patrimônio rural em afetação” (art. 7º e seguintes) criada pela Medida Provisória 897, de 01 de outubro de 2019. Esse patrimônio afetado para os financiamentos rurais constitui nova acepção de garantia rural, refletindo diretamente no Sistema Registral Brasileiro, que além de promover seu registro e cancelamento, estendeu-lhe também competência para realização dos procedimentos dos artigos 26 e 27 da Lei 9.514/1997 que foram instituídos para cobrança de débitos de Cédula Imobiliária Rural (CIR) e Cédula de Produto Rural (CPR) vinculados ao patrimônio rural afetado.

Em primeiro lugar, a citada lei alterou o art. 178, II da Lei nº 6.015/1973 e a Lei nº 8.929/1994, bem como da revogou os arts. 30 ao 40 do Decreto-lei nº 167/1967 e do art. 167, I, 13 da Lei nº 6.015/1973, de modo a não mais serem registradas as Cédulas de Crédito Rural e as Cédulas de Produto Rural no Livro 3 do Registro de Imóveis. Vale frisar que as garantias reais constituídas por estas cédulas devem ser registradas no Registro de Imóveis competente, pois a publicidade registral é a que confere o efeito constitutivo do direito real, tornando-o oponível erga omnes.

Além das mudanças relativas às cédulas, criou-se o denominado patrimônio rural em afetação,  segundo o qual o imóvel rural, ou fração dele, passa a se submeter ao regime de afetação, tornando-se incomunicável com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios rurais em afetação por ele constituídos quando vinculado a Cédula de Produto Rural (CPR) ou por meio de Cédula Imobiliária Rural (CIR).

O vocábulo “afetação” tem como essência jurídica a segregação de determinado bem para vinculá-lo a uma finalidade específica, permanecendo sob a titularidade de um mesmo sujeito[1]. A afetação não provoca a mutação subjetiva da propriedade do bem, mas o mantém apartado do restante do patrimônio, tornando-o exclusivamente destinado a finalidade que lhe foi atribuída[2]. Todavia, no caso do patrimônio rural, a afetação representa verdadeira constituição de garantia real, segregando o imóvel rural do restante do patrimônio do proprietário, destinando-o exclusivamente como garantia real de financiamentos rurais.

O patrimônio rural de afetação é constituído pelo proprietário, pessoa natural ou jurídica, sobre seu imóvel rural ou fração dele. Sua finalidade é tornar o bem restrito a garantir operações de crédito rural junto às instituições financeiras, tornando-o passível de garantias por meio da emissão de Cédula de Produto Rural (CPR), ou em operações financeiras contratadas pelo proprietário por meio de Cédula Imobiliária Rural (CIR).

A constituição do patrimônio rural em afetação opera por solicitação do proprietário mediante registro no Registro de Imóveis da circunscrição territorial do bem[3]. Dada a omissão do legislador quanto ao título hábil para a instrumentalização do patrimônio rural em afetação, remete-se a regra supletiva do artigo 108 do Código Civil, de modo que deve ser formalizado por escritura pública nas situações  em que o valor do bem afetado seja superior a trinta salários mínimos, sobretudo porque este patrimônio de afetação tem natureza da própria garantia real.

A constituição do patrimônio rural de afetação opera por ato de registro em sentido estrito a ser feito na matrícula do imóvel rural afetado. A natureza do ato registral como sendo ato de registro é expressa no art. 9º da Lei nº 13.986/2020, que, ao consignar sua constituição “por meio de registro no cartório de registro de imóveis”,  corrigiu a atecnia da redação da Medida Provisória 897/2019, onde se fazia menção que a constituição se dava  “por meio de inscrição”[4]. O vocábulo “inscrição”, previsto na Medida Provisória, não era claro quanto à natureza do ato registral, bem como a terminologia utilizada era obsoleta, sobretudo porque a Lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos) pôs fim à utilização das terminologias “inscrição” e “transcrição”, as quais passaram a ser integradas no termo “registro”.

O patrimônio rural em afetação constitui e modifica a situação jurídico-real do imóvel; por ele há a transmutação do bem com a segregação de patrimônios, de sorte que é o registro que lhe dará eficácia e publicidade erga omnes[5]. Daí a afirmação de que o registro stricto sensu é o ato correto, tal como a literal previsão do art. 9º e 11 da Lei nº 13.896/2020. Aliás, o rol do art. 167, inc. I, da Lei 6.015/1973, que elenca os atos jurídicos passíveis de registro em sentido estrito no Registro de Imóveis, é  numerus clausus não exauriente, podendo sujeitar-se a registro todos os atos e situações jurídicas desde que previstos em lei para serem inscritas por ato de registro.

O legislador fixou restrições para a constituição do patrimônio rural de afetação, coibindo-se sua incidência em imóvel gravado por hipoteca, por alienação fiduciária de coisa imóvel ou por outro ônus real, ou, ainda, que tenha registrada ou averbada em sua matrícula qualquer uma das informações de que trata o art. 54 da Lei nº 13.097/2015. Também não poderá ser constituído patrimônio rural em afetação sobre pequena propriedade rural de que trata a alínea “a” do inciso II do caput do art. 4º da Lei nº 8.629/1993, sobre área de tamanho inferior ao módulo rural ou à fração mínima de parcelamento, o que for menor – nos termos do art. 8º da Lei nº 5.868/1972-, ou sobre bem de família convencional (exceto na situação prevista no § 2º do art. 4º da Lei nº 8.009/1990).

A constituição do patrimônio rural em afetação se dá um procedimento especial, ou extraordinário, com vetor no art. 11 e seguintes da Lei 13.986/2020. Não se sujeita ao procedimento comum registral, uma vez que o legislador previu regras próprias a serem observadas pelo registrador para a constituição do patrimônio rural em afetação. Daí dizer que se trata de um procedimento extraordinário de registro, que se inicia com a prenotação da solicitação do proprietário no Registro de Imóveis competente, mas com peculiaridades no seu processamento até culminar na registrabilidade do patrimônio afetado.

A rogação deve ser instruída obrigatoriamente com os documentos indicados no art. 12 da citada lei[6], além do próprio instrumento de formalização do patrimônio rural em afetação. Após a atuação e exame dos documentos apresentados, o oficial, caso considere que estão em desacordo com o disposto na Lei 13.986/2020, conferirá ao interessado o prazo de 30 dias, contado da data da decisão, para promover as correções necessárias, sob pena de indeferimento da solicitação[7]. O interessado poderá solicitar a reconsideração da decisão do oficial de registro de imóveis[8]. Após sanados os óbices levantados pelo registro, o oficial lançará na matrícula, por ato de registro, o patrimônio afetado. O registro retroage a data da prenotação, que se torna o dies a quo da produção de todos os efeitos legais da afetação de imóvel rural.

Registrado o patrimônio rural em afetação do imóvel ou fração dele vinculados a CIR ou a CPR, infere-se a coibição de registro, pelo Registro de Imóveis, de outras garantias reais sobre o citado bem[9]. O imóvel assim constituído torna-se incomunicável e não poderá ser dado em garantia real de nenhuma outra obrigação, bem como se torna impenhorável e não se sujeitará a constrição judicial, ressalvadas as emanadas de execuções de dívidas trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural[10]. O imóvel também não será atingido pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário e não integra a massa concursal[11].

Outro efeito é a coibição de atos translativos de propriedade como a compra e venda, doação, parcelamento ou qualquer outro ato translativo de propriedade por iniciativa do proprietário, ainda que a afetação seja apenas sobre parte dele. Trata-se de regra proibitiva contemplada no art.  10, § 2º da Lei nº 13.986/2020, que propositalmente fez uso da expressão “qualquer outro ato translativo de propriedade por iniciativa do proprietário”. Logo, não se vê óbice para a transmissibilidade causa mortis do patrimônio rural afetado, já que transferência, neste caso, opera imediata e automaticamente aos herdeiros, em caráter indivisível, na data do falecimento do proprietário rural (princípio saisine).

Destarte, constituído o patrimônio rural em afetação, o proprietário rural fica legitimado para emitir a Cédula Imobiliária Rural (CIR), que será garantida por parte ou por todo o patrimônio rural em afetação. Aliás, dentre outros requisitos que deverão estar indicados na CIR (art. 22), está a identificação do patrimônio rural em afetação, ou de sua parte, correspondente à garantia oferecida na CIR e  a autorização irretratável para que o oficial de registro de imóveis processe, em favor do credor, o registro de transmissão da propriedade do imóvel rural, ou da fração, constituinte do patrimônio rural em afetação vinculado à CIR, de acordo com o disposto no art. 28 da Lei 13.986/2020.

Se inadimplida a CIR ou a CPR[12] que se vinculam ao patrimônio rural afetado, o credor poderá exercer imediatamente o direito à transferência do imóvel para sua titularidade, mediante ato de registro da propriedade da área rural que constitui o patrimônio rural em afetação, ou de sua fração, vinculado à CIR ou CPR, no Registro de Imóveis correspondente[13]. Vale dizer, não quitado o débito da CIR ou da CRP garantido pelo patrimônio afetado, haverá a transmissão da propriedade rural para o credor, mediante ao pagamento dos impostos de transmissão correspondentes, aplicando-se, no que couber, o disposto nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/1997.

A titularidade do imóvel convertida ao credor o obriga a realização leilão para a alienação do bem, na forma da Lei 9.514/1997, observando o disposto no 3º do art. 28 da Lei 13.896/2020, ou seja, “se, no segundo leilão de que trata o art. 27 da Lei nº 9.514/1997, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor da dívida, somado ao das despesas, dos prêmios de seguro e dos encargos legais, incluídos os tributos, o credor poderá cobrar do devedor, por via executiva, o valor remanescente de seu crédito, sem nenhum direito de retenção ou indenização sobre o imóvel alienado.”[14]

Não havendo a transmissão da propriedade ao credor, a afetação do patrimônio rural permanecerá com todos os efeitos reais até a averbação de seu cancelamento, que será feita pelo Registro de Imóveis mediante requerimento do interessado (princípio da rogação registral), acompanhado da comprovação de não existência de CIR e de CPR sobre o patrimônio a ser desafetado. Essa prova é feita por meio de certidão emitida por entidade mencionada no art. 19 da Lei 13.986/2020 (entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou depósito centralizado de ativos financeiros e de valores mobiliários) no caso de CIR, ou por meio de certidão emitida pelo Registro de Imóveis de imóveis competente, no caso de CPR. Observe que não poderá ser emitida CIR ou CPR até a conclusão do pedido sobre imóvel rural, ou sua fração, em que há requerimento de cancelamento do patrimônio rural em afetação.

Percebe-se que o legislador não apenas conferiu ao Registro de Imóveis a competência e controle de legalidade da constituição do patrimônio rural em afetação, mas também a operalização e controle da execução extrajudicial em casos de não pagamento de financiamento rural de CIR e CPR vinculado ao patrimônio afetado, com o registro da transmissão da propriedade ao credor. Tal fato demonstra mais uma vez o reconhecimento legislativo da eficiência registral já efetivamente exarada na execução extrajudicial da Lei 9.514/1997, que contribui diretamente para o desenvolvimento econômico do país.

 

 

[1] M. N. Chalhub, Da Incorporação, 1ª ed., p. 79.

[2] C.M.Ferrari – V. F. Kumpel, Tratado Notarial e Registral, V. 5, Tomo II, YK Editora, 2020, pp. 2756-2757.

[3] Art. 9º da Lei 13.986/2020

[4] Art. 8º da MP nº 897/2019.

[5] C.M.Ferrari – V. F. Kumpel, Tratado Notarial e Registral, V. 5, Tomo II, YK Editora, 2020, p. 2761.

[6] São eles: I – dos documentos comprobatórios da inscrição do imóvel no Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR), do domínio do requerente e da inexistência de ônus de qualquer espécie sobre o patrimônio do requerente e o imóvel rural, dos documentos da inscrição do imóvel no Cadastro Ambiental Rural (CAR), dos documentos de regularidade fiscal, trabalhista e previdenciária do requerente e da certificação, perante o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do georreferenciamento do imóvel do qual a totalidade ou a fração está sendo constituída como patrimônio rural em afetação; II da prova de atos que modifiquem ou limitem a propriedade do imóvel; III – do memorial de que constem os nomes dos ocupantes e confrontantes com a indicação das respectivas residências; IV – da planta do imóvel, obtida a partir de memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a Anotação de Responsabilidade Técnica, que deverá conter as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional adotada pelo Incra para a certificação do imóvel perante o Sigef/Incra; e V- das coordenadas dos vértices definidores dos limites do patrimônio afetado, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional adotada pelo Incra para certificação do imóvel perante o Sigef/Incra.

[7]  Art. 13 da Lei 13.986/2020.

[8] Art. 13, parágrafo único, da Lei 13.986/2020.

[9] “Art. 10. Os bens e os direitos integrantes do patrimônio rural em afetação não se comunicam com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios rurais em afetação por ele constituídos, nas seguintes condições:

I – desde que vinculado o patrimônio rural em afetação a CIR ou a CPR;

II – na medida das garantias expressas na CIR ou na CPR a ele vinculadas.

  • 1º Nenhuma garantia real, exceto por emissão de CIR ou de CPR, poderá ser constituída sobre o patrimônio rural em afetação.”

[10] Art. 10, § 3º, da Lei 13.986/2020.

[11] Art. 10, § 4º, da Lei 13.986/2020.

[12] Sobre a a CPR, diz o art. 16 da Lei 13.986/2020: “A emissão da CPR que utilizar como garantia o patrimônio rural em afetação atenderá ao disposto na Lei nº 8.929, de 22 de agosto de 1994, e deverá cumprir as normas previstas no caput e no § 1º do art. 19, no art. 21, nos incisos VIII e IX do caput e nos §§ 1º e 2º do art. 22 e nos arts. 24, 25 e 28 desta Lei.”

[13] Art. 28 c/c art. 16 da Lei 13.986/2020.

[14] Art. 28, § 2º e § 3º  c/c art. 16 da Lei 13.986/2020.

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