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STJ reconhece filiação socioafetiva post mortem entre tio e sobrinha.

Uma mulher que foi criada como filha pelo tio desde os dois anos de idade conquistou o reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem. A decisão é do Superior Tribunal de Justiça – STJ, ao negar recurso especial que visava extinguir a decisão do tribunal de origem.

De acordo com a decisão, a mulher passou a morar com o tio quando sua mãe biológica mudou para a casa dele. Na época, ela tinha dois anos e, desde então, o homem cuidou dela como filha, pagando as despesas educacionais, comprando roupas e a ensinando a trabalhar.

O tribunal de origem reconheceu, após análise de provas, que a autora sempre esteve ao lado do falecido durante toda infância, adolescência e fase adulta. Ela chegou a trabalhar diretamente no negócio da família, em cargo de confiança.

“Neste contexto, se atualmente a filiação socioafetiva se reconhece post mortem com a prática comum de ‘adoção à brasileira’, muito mais se é de reconhecer em relação à sobrinha e seu tio, com laços de afeto originários tanto de um vínculo biológico quanto de um ato de acolhimento da mesma”, diz um trecho da decisão.

Segundo os autos, o registro da filiação não foi formalizado por conta de preconceitos. De acordo com o raciocínio do falecido, a adoção poderia afetar a honra de sua família, uma vez que a autora é filha de sua irmã, o que não o impediu de tratá-la como filha.

Avanço

Para Maria Berenice Dias, advogada do caso e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a decisão é um passo importante no avanço da valorização do vínculo de filiação socioafetiva no meio jurídico brasileiro, causa defendida pelo Instituto há muitos anos.

“Como se trata do caso em que um tio criou a sobrinha, filha de sua irmã, não havia como ocorrer o reconhecimento da paternidade porque, se o nome dele fosse para a certidão de nascimento dela, seria uma relação incestuosa entre dois irmãos”, afirma.

Ela destaca a diferença entre adoção póstuma, destacada até no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990) ,  e a ação de declaração post mortem de filiação socioafetiva.

“O reconhecimento da filiação prevê a posse do estado de filho e não é necessária a manifestação expressa da vontade de um vínculo. Ela nasce com um fato jurídico, e isso torna a decisão em questão tão emblemática. Em vida, o tio não pensou em adotar a sobrinha em nenhum momento, porque de fato não teria como. Contudo, isso não impede a filiação socioafetiva post mortem entre eles”, explica.

Tendência

Segundo o advogado Ricardo Calderón, diretor nacional do IBDFAM, o reconhecimento de uma filiação socioafetiva post mortem demonstra a magnitude da afetividade na definição dos laços familiares contemporâneos, o que está refletido no Direito das Famílias.

“No caso dos autos, a decisão constatou a presença dos requisitos inerentes ao reconhecimento da socioafetividade e reitera que os elementos da chamada posse de estado de filiação estão devidamente comprovados”, analisa.

Ele chama a atenção para o fato de que a deliberação indica que é possível o reconhecimento do vínculo mesmo sem que o falecido pai socioafetivo tenha deixado um registro escrito expressando a vontade de formalizar a filiação.

“Este julgado confirma que a força fática advinda da relação paterno-filial socioafetiva é suficiente para, posteriormente, ainda que após a morte, consolidar o reconhecimento jurídico de uma filiação. Ao afirmar que não é necessária uma manifestação escrita do pai, o tribunal mostra que a notoriedade do vínculo filial, ou seja, o conhecimento público da relação, é suficiente para efetivar a filiação”, aponta.

Decisão inovadora

Ricardo Calderón observa que a busca pelo reconhecimento de filiação entre tio e sobrinha não é comum na justiça brasileira. Neste caso, o que houve foi uma relação paterno-filial devido às circunstâncias fáticas.

“Trata-se de uma relação peculiar que muitas vezes não está presente em outras famílias. No caso dos autos, houve uma robusta comprovação demonstrando que, efetivamente, o pai socioafetivo exerceu a função paterna por aproximadamente quarenta e cinco anos de maneira pública e inequívoca”, aponta.

Segundo ele, somente diante das provas apresentadas foi possível diferenciar a situação do caso em questão de outras relações entre tios e sobrinhas.

“Não é tão corriqueira a relação de tio e sobrinha vir a se transformar e ser reconhecida judicialmente por meio de um vínculo de filiação. No entanto, a força construtiva dos fatos sociais e a robusta prova demonstrada permitiram que o tribunal concedesse tal decisão que, sem dúvida, é singular, mas pode vir a servir de orientação para outras situações que tenham uma certa similaridade com o caso concreto”, observa.

Fonte: IBDFAM