O que justifica o interesse na obrigatoriedade do registro de nascimento e o que é o fenômeno denominado de “sub-registro”?

  1. O interesse na obrigatoriedade do registro

“O interesse na obrigatoriedade do registro de nascimento não se alicerça exclusivamente no comprometimento com a garantia dos direitos humanos. Evidentemente, tal escopo, por si só, já justificaria a obrigatoriedade, mas não é o único: a ele se soma um segundo objetivo, também de suma importância.

Com efeito, o próprio Estado tem absoluto e total interesse em que as pessoas procurem o registro civil das pessoas naturais para registrar os nascimentos ocorridos em território nacional, não apenas como forma de zelo por um de seus fundamentos, ou seja, a dignidade da pessoa humana, como também no que concerne à Administração Pública e à própria soberania nacional.

Em primeiro lugar, são essas declarações (de nascimento) que possibilitam um mapeamento demográfico do território brasileiro, garantindo ao Estado maior controle da sua população. Ora, a população é, como já assentado há muito na doutrina jurídica e, inclusive, na ciência política, um dos elementos constitutivos do Estado-nação[1]. Sendo assim, inequívoco o interesse estatal de, para a própria manutenção de sua soberania, deter certo controle – ou ao menos conhecimento – da situação demográfica em território nacional.

O mapeamento biossocial encontra enorme utilidade, também, em matéria de planejamento de políticas públicas. De fato, é por meio do registro civil que o Estado se mune de uma vasta base de dados acerca dos nascimentos ocorridos, bem como das suas circunstâncias, tais como o número de óbitos neonatais, suas distribuições quantitativas nas diversas localidades e a idade média das mulheres em suas gestações, dentre diversas outras.

Esse plexo de informações provê o Estado de um retrato estatístico da população brasileira, permitindo o planejamento de medidas mais adequadas à realidade social e às necessidades de cada região, tais como a melhora da implantação de unidades de saúde, da instalação de maternidades e da resolução de problemas relacionados ao registro de nascimento e todo o seu contexto fático e jurídico.

Em adição, como bem pontua a doutrina, o registro civil tem marcada importância para a nação na medida que fornece “fonte auxiliar preciosa para a administração pública, em serviços essenciais, como polícia, recrutamento militar, recenseamento, estatística, serviço eleitoral, arrecadação de impostos e distribuição da justiça”.[2]

É nesse mister que, por imposição do Decreto nº 722, de 6 de setembro de 1890, os oficiais do registro civil e os escrivães de paz eram obrigados a enviar ao governo brasileiro (mais especificamente, à Diretoria do Serviço de Estatísticas) os mapas estatísticos dos nascimentos, casamentos e óbitos[3]. Tais informações passaram a ser gradativamente utilizadas para o estabelecimento de políticas públicas, ou seja, para a consecução dos direitos sociais, de segunda geração.

O estudo demográfico adquire redobrada importância no contexto da sociedade brasileira, eivada de desigualdade social. Com efeito, grande parte da população depende diretamente do Estado para ter acesso ao mínimo existencial, ou seja, à realização das necessidades humanas mais básicas, tais como alimentação, saúde, educação e assistência social.

Ora, para que o Estado possa agir nesse aspecto, precisa antes de tudo identificar os cidadãos em estado de vulnerabilidade, localizá-los e conhecer sua realidade e suas necessidades, para que com isso possa adotar políticas apropriadas de assistência social e distribuição de renda. Como os recursos são limitados, mister se faz selecionar as pessoas realmente mais carentes do auxílio estatal, e distribuí-lo com a maior justiça social possível.

Para que o indivíduo possa ser beneficiário dos programas sociais do governo, é preciso que antes de tudo seja identificável, daí a importância de ter sua existência como cidadão publicizada. Em outras palavras, para que o Estado possa auxiliar um indivíduo, precisa conhecer suas necessidades, e por isso é imprescindível que, por uma razão lógica, conheça ao menos sua existência.

Ora, é justamente pelo registro civil de nascimento, conforme já apontado, que se noticia ao Estado a existência de uma nova pessoa natural. É nesse diapasão que entra em relevo a questão do sub-registro.”

 

  1. O fenômeno do sub-registro

“De acordo com as estatísticas auferidas pelo IBGE, muitos brasileiros não têm sequer o registro civil de nascimento, muito menos os demais documentos necessários para a prática dos atos diuturnos da vida civil. São, assim, pessoas ignoradas – no sentido não apenas de desamparo, mas também de desconhecimento – pelo Estado, e por isso geralmente não recebem qualquer tipo de benefício ou auxílio dos programas governamentais.

Trata-se, na grande maioria dos casos, de pessoas mais humildes, analfabetas, que vivem em precárias condições de vida – ou seja, justamente aquelas que mais necessitam da providência estatal[4].

É possível conceituar o sub-registro como a substituição do assento e certidão de nascimentos pela declaração de nascido vivo (DNV) emitida pela maternidade.

Isso significa que a criança deixa de portar certidão lavrada pelo registro civil para, eventualmente, apresentar o único documento que lhe foi confeccionado – a declaração de nascido vivo (DNV). Daí o nome pejorativo sub-registro. Isso significa que a criança tem um “registro”, ou seja, sua existência é sabida, mas não está ainda regularizada. É diferente da criança que nasce fora da maternidade e, caso não venha a ser registrada, não é titular nem do sub-registro e, consequentemente, é absolutamente ignorada pelas estatísticas oficiais.

A apuração do sub-registro é realizada pelo IBGE[5] (…). Significa, em termos técnicos, a subtração entre o número estimado de pessoas nascidas vivas no ano de análise e o número de pessoas nascidas vivas no ano e registradas no mesmo ano ou no ano seguinte.

Para o levantamento do número de nascidos vivos, adquire especial relevância os dados coletados nas maternidades e estabelecimentos de saúde em geral, responsáveis por emitir a DNV e, com isso, consignar a ocorrência de cada nascimento com vida[6],

Para estimar quantos desses nascidos vivos foram levados a registro, ganha enfoque o papel dos oficiais de registro, que, por determinação da Lei nº 6.015/1973, deverão remeter o mapa dos nascimentos (dentre outros) registrados, com os respectivos números de identificação da DNV, trimestralmente ao IBGE[7].

A Lei dos Registros Públicos enuncia que, com base nessas duas categorias de informações, os órgãos públicos interessados poderão cruzar as informações referentes aos registros de nascimento efetuados, com as informações referentes às Declaração de Nascido Vivo emitidas, para assim concluir quais dessas declarações (identificadas pelo número) não foram levadas à registro, e, então, promover a busca ativa de nascimentos “sub-registrados”.”

 

 

Fonte: V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais, 1ª ed., v. 2, São Paulo, YK, 2017, pp. 520-524.

 

[1]     Cf. C. D. Albuquerque Mello, Curso de Direito Internacional Público, vol. I, 15ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 355; H. Accioly – G. E. Nascimento e Silva – P. B. Casella, Manual de Direito Internacional Público, 17ª ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 232; F. Rezek, Direito Internacional Público – Curso elementar, 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2016, p. 220, para quem o verdadeiro elemento essencial característico do Estado é a comunidade nacional, ou seja o conjunto de nacionais, e não a simples população, que inclui os estrangeiros residentes ou presentes no território nacional.

[2]     Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, vol. I, 40ª ed., São Paulo, Saraiva, 2005, p. 100.

[3]     Art. 1º do Decreto nº 722/1890: “Os escrivães de paz e os officiaes privativos do registro civil dos casamentos remetterão directamente á Directoria Geral de Estatistica, dentro dos primeiros oito dias dos mezes de janeiro, abril, julho e outubro de cada anno, um mappa dos nascimentos, casamentos e obitos que houverem registrado no trimestre anterior”.

[4]     O sub-registro está intimamente associado à pobreza e à exclusão social dela decorrente. Essa correlação pode ser inferida do cotejo entre as taxas de sub-registro e as taxas de desenvolvimento local, que tendem a ser inversamente proporcionais.

[5]     Os resultados dessa apuração são publicados periodicamente pelo IBGE. A mais recente publicação dessa pesquisa pode ser vista em Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Estatísticas do Registro Civil 2014, vol. XLI, Rio de Janeiro, IBGE, 2014, disponível in http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2014_v41.pdf [04-09-2016].

[6]     Quando do advento da Lei nº 12.662/2012, havia grande discussão da possibilidade de a Declaração de Nascido Vivo substituir ou ter força de registro civil, visando erradicar o sub-registro. Na medida em que a DNV é apenas o título hábil para a lavratura do assento de nascimento, determinou o art. 3º, § 2º, que a DNV não substitui de forma alguma o assento e a certidão de nascimento.

[7]     Art. 49 da Lei nº 6.015/1973: “Os oficiais do registro civil remeterão à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, dentro dos primeiros oito dias dos meses de janeiro, abril, julho e outubro de cada ano, um mapa dos nascimentos, casamentos e óbitos ocorridos no trimestre anterior. (…) § 3o No mapa de que trata o caput deverá ser informado o número da identificação da Declaração de Nascido Vivo.”

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