O que é o Parentesco Socioafetivo e a “Posse do Estado de Filho”?

“O parentesco socioafetivo é a união erigida no cotidiano da vida familiar, ainda que não haja relação sanguínea ou jurídica entre os envolvidos. Por prescindir de laços genéticos, o parentesco socioafetivo pode ser classificado como uma modalidade de parentesco civil[1].

A base dessa união remete, portanto, à criação e à convivência diuturna, ou seja, uma situação de fato que atrai a proteção do sistema jurídico, na medida em que envolve uma série de direitos constitucionalmente assegurados.

O princípio da afetividade, que constitui o núcleo da ideia de parentesco socioafetivo, de fato, assenta-se sobre quatro principais fundamentos constitucionais[2]:

(i) a plena isonomia da filiação, independentemente de sua origem[3];

(ii) a igualdade entre o parentesco civil e o natural[4];

(iii) o reconhecimento da comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes como entidade familiar[5];

(iv) a escolha pela convivência familiar e comunitária como uma das prioridades absolutas para proteção constitucional da criança e do adolescente[6].

A possibilidade do reconhecimento legal da paternidade socioafetiva tem respaldo na própria dicção do Código Civil hodierno. Este, no art. 1.593, como já visto, determina que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Esta hipótese (“outra origem”) não constava no Código Civil de 1916, sob a égide do qual vigorava a exclusividade do matrimônio na constituição da família. A expressão empregada no novo diploma é genérica justamente de modo a contemplar as diversas hipóteses de configuração familiar, atendendo assim aos preceitos constitucionais supracitados[7].

É bom que se diga que, a despeito de existirem teses no sentido contrário, a afetividade não é mais importante, mas também não é menos importante do que a relação consanguínea. O ideal seria que o vínculo consanguíneo gozasse sempre de afetividade, mas sendo as relações distintas, ambas têm o mesmo status jurídico.

Em outras palavras, de forma ideal, a afetividade deveria permear o vínculo parental nos dois polos da relação. Na relação filial, a afetividade deveria ser tanto do pai em relação ao filho, quanto do filho em relação ao pai. Porém, é uníssono, na doutrina e na jurisprudência, que a afetividade não precisa ser reflexiva, basta que seja unilateral.

Isto significa que basta o filho alegar a afetividade em relação a um determinado pai para que se reconheça a referida paternidade. O pai não consegue se desvencilhar do vínculo, e nem ver improcedente determinada ação investigatória alegando ausência de afetividade em relação ao filho[8].

Em que pese a constituição do vínculo de socioafetividade não depender da bilateralidade do afeto, uma vez consolidada, a parentalidade gerará efeitos correspectivos, assim como ocorre no parentesco biológico.”

Atualmente, portanto, à luz da Constituição Federal de 1988, o parentesco adquiriu um aspecto socioafetivo, que possibilita a proteção jurídica de uma situação de fato sociológica[9]. A doutrina, nesse sentido, no mister de erigir critérios para a identificação da socioafetividade, recorre à noção de posse de estado, aplicando seus preceitos à situação filiação. Daí afirmar-se que a filiação socioafetiva funda-se na posse do estado de filho[10].

A posse do estado de filho, como a terminologia sugere, pode ser definida como uma situação de fato que contempla todos os aspectos extrínsecos da filiação, ou seja, todas as características que emanam dessa condição, apesar de carecer do mesmo fundamento de direito, ou seja, o vínculo civil ou sanguíneo de parentesco. Trata-se, portanto, de um fato psicossocial, que se estabelece pelo comportamento adotado tanto entre os próprios indivíduos quanto perante a sociedade.

A posse de estado de filho, repise-se, não foi acolhida em lei de forma expressa, mas a doutrina lhe assinala três elementos, para aferir sua existência, a serem investigados no caso concreto.”

“Diante disso, pode-se apontar como principais características da posse do estado de filho sua notoriedade e sua continuidade[11].

A notoriedade, que a tradição jurídica francesa[12] – influenciada pelo desenvolvimento do direito canônico-medieval acerca da matéria[13] – resume na tríade “nomen, tractatus et fama[14], implica a objetiva visibilidade desse estado no âmbito social, ou seja, a exteriorização da condição filial (aparência)[15].

São indícios dessa visibilidade o fato de o sujeito utilizar o sobrenome do pai (nomen), de ser tratado, criado, educado e apresentado como filho, pelo pai, à sociedade (tractatus)[16], e de ser, de fato, enxergado pela opinião pública como filho (fama)[17].

Sendo um fato construído socialmente, além de uma relação proveniente da convivência, a posse do estado de filho não se estabelece de pronto, pressupondo necessariamente uma certa continuidade. Ou seja, para que se configure, é imprescindível que a relação tenha adquirido estabilidade, decorrente da reiteração comportamental ao longo do tempo.

Conclui-se, portanto, que a posse do estado de filho decorre do exercício contínuo e notório dos direitos e deveres inerentes à relação de parentesco, apesar de esta inexistir aprioristicamente.

A situação de fato, apesar de não se fundamentar num vínculo genético ou civil, por indicar a existência de um valor juridicamente protegido (a afetividade), adquire juridicidade, sendo apta a erigir um vínculo jurídico de parentesco.

Observe que os elementos fundamentais da posse de estado de filho nada mais são do que aparência de paternidade-filiação que ou tem por substrato a própria paternidade-filiação ou a ela conduzirá. A relação da socioafetividade e a aparência serão melhor abordadas no tópico a seguir.”

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Fonte: V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais, 1ª ed., v. 2, YK, 2017, pp. 470-471 e 476-481.

[1]     Enunciado nº 256 do Conselho de Justiça Federal (CJF), aprovado na III Jornada de Direito Civil, sobre o art. 1.593, que “a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.

[2]     P. L. N. Lôbo, in A. J. Azevedo (coord.), Código Civil Comentado, vol. XXVI, São Paulo, Atlas, 2003, p. 42.

[3]     Art. 227, § 6º, da CF/1988: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

[4]     Art. 227, § 5º, da CF/1988: “A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros”.

[5]     Art. 226, § 4º, da CF/1988: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

[6]     Art. 227 da CF/1988: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

[7]     O texto do art. 1.593 da atual codificação, portanto, permite resguardar a paternidade socioafetiva, crê-se. Não será válido argumentar com a ausência de intenção do legislador. A lei estabelece sua ordem, despregada da vontade de quem a instituiu, conforme ensina F. C. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, t. 1. Prefácio, p. 13.

[8]     Pode-se citar como exemplo o seguinte julgado: “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PERFILHAÇÃO. REGISTRO CIVIL. O ato de reconhecimento de filho é irrevogável, nos termos do que dispõem o artigo 1º da Lei nº 8.560/92 e artigo 1.609 do CCB, impondo-se que seja provada a ocorrência de vício do ato jurídico, ou seja, erro, dolo, coação, simulação ou fraude, para que se possa admitir a anulação do registro civil. O simples arrependimento e a alegada ausência de liame afetivo não são suficientes para a procedência da ação negatória de paternidade. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.” (TJRS, 8ª Câm. Cível, Apel. Cível n. 70053552659, rel. Alzir Felippe Schmitz, j. 6-6-2013).

[9]     Orienta o Enunciado nº 6 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), “Do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental”.

[10]   Cf. M. Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias, 10ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015p. 405.

[11]   L. E. Fachin, Estabelecimento da Filiação e Paternidade Presumida, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1992, p. 157.

[12]   Essa tradição ainda ressoa nos atuais artigos 311-1 e 311-2 do Code civil francês, que estabelecem os fatos que devem ser levados em consideração para o reconhecimento da posse do estado de filiação.

[13]   Cf. A. Lefebvre-Teillard, Autour de l’enfant – Du droit canonique et romain medieval au Code Civil de 1804, Leiden, Brill, 2008, pp. 207-220.

[14]   Acerca da possession d’etat, cf.  M. L. Engelhard-Grosjean, The French Law of Filiation, in Louisiana Law Review, 37 (1977), pp. 702-703.

[15]   Note-se, que o nomen, tractatus et fama são os elementos tradicionais, termos provêm do sistema de direito francês acerca da prova da posse de qualquer estado, não apenas da filiação.

[16]   STJ, 4ª T., REsp nº 119.346/GO, rel. Barros Monteiro, j. 1-4-2003: “Filiação. Anulação ou reforma de registro. Filhos havidos antes do casamento, registrados pelo pai como se fossem de sua mulher. Situação de fato consolidada há mais de quarenta anos, com o assentimento tácito do cônjuge falecido, que sempre os tratou como filhos, e dos irmãos. Fundamento de fato constante do acórdão, suficiente, por si só, a justificar a manutenção do julgado. Acórdão que, a par de reputar existente no caso uma “adoção simulada”, reporta-se à situação de fato ocorrente na família e na sociedade, consolidada há mais de quarenta anos. Status de filhos. Fundamento de fato, por si só suficiente, a justificar a manutenção do julgado. Recurso especial não conhecido”.

[17]   Orlando Gomes, Direito de Família, 7ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 311.

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