“Questão delicada diz respeito à forma de constituição desse patrimônio de afetação. Segundo a Medida Provisória nº 897/2019, seria constituído “por solicitação do proprietário por meio de inscrição no registro de imóveis” (Art. 8º). O termo “inscrição” não esclareceu o ato registral que deveria ser praticado, além de afrontar o art. 168 da Lei dos Registros Públicos, que pôs fim à utilização das terminologias “inscrição” e “transcrição”, as quais passaram a ser abrangidas pelo termo “registro”.
Na sequência, o art. 10 da Medida Provisória mencionou de forma muito sutil que se trataria de um ato de registro ao dispor que “o oficial de registro de imóveis protocolará e autuará a solicitação de registro do patrimônio de afetação e os documentos vinculados [….]”. Percebe-se, então, que não houve uma determinação expressa da natureza do ato a ser praticado.
A conversão da referida MP na Lei nº 13.986/2020 pareceu resolver o problema, na medida em que o art. 9º estabeleceu de forma expressa – e enfática – que o ato adequado para a instituição do patrimônio rural em afetação seria o de registro em sentido estrito: “o patrimônio rural em afetação é constituído por solicitação do proprietário por meio de registro no cartório de registro de imóveis”.
No entanto, mesmo diante da determinação expressa do art. 9º da Lei nº 13.986/2020, sugiram duas correntes acerca da natureza do ato registral a ser praticado. A saber.
A primeira corrente entende que o registro stricto sensu não corresponde ao ato correto para a instituição do patrimônio rural de afetação. Em primeiro lugar, porque o rol de atos sujeitos a registro em sentido estrito (art. 167, I, da Lei nº 6.015/1973) é taxativo e numerus clausus, e não foi ampliado pela Lei nº 13.986/2020 para acomodar o patrimônio de afetação de imóvel rural. As leis em geral normalmente têm o cuidado de acrescer ao rol do art. 167, I, a natureza “de registro” do ato a ser praticado, como o fez, por exemplo, com a legitimação de posse (Lei nº 11.977/2009) ou com a legitimação fundiária (Lei nº 13.465/2017). Ademais, considera-se que, na dúvida quanto ao ato registral a ser praticado, deverá prevalecer o de “averbação”.
Em segundo lugar, por um motivo de ordem material: a constituição desse patrimônio de afetação não importa mutação júri-real plena, na medida em que o patrimônio não é transferido de um titular para outro, mas sim de um titular para um monte com destinação específica. Apenas haverá a transmutação plena da propriedade em caso de inadimplemento, ocasião em que o imóvel será levado a leilão.
No entanto, mostra-se mais adequado o posicionamento da segunda corrente, segundo a qual o ato constitutivo do patrimônio rural em afetação é o ato de “registro” em sentido estrito, em conformidade com a previsão do art. 9º da Lei nº 13.986/2020.
Concorda-se, em primeiro lugar, que o legislador da Lei nº 13.896/2020 de fato deveria ter incluído o patrimônio de afetação no rol do art. 167, I, da Lei dos Registros Públicos, o que seria plenamente possível, tendo em vista tratar-se de um rol dinâmico, e teria sanado qualquer dúvida acerca da natureza do ato a ser praticado. Contudo, é importante destacar que esse argumento por si só não é suficiente para concluir que o patrimônio de afetação rural deve ser instituído por ato de averbação.
Como se sabe, a regra de solução de antinomias de segundo grau (no caso, conflito entre lei posterior e lei especial) faz prevalecer o critério cronológico sobre o critério da especialidade, de forma que a lei mais nova prevalece sobre a lei especial, na hipótese, o art. 9º da Lei nº 13.896/2020 prevalece sobre eventual ausência de previsão no inciso I do art. 167 da Lei nº 6.015/1973. Nesse mesmo sentido foi a intepretação da natureza jurídica do ato registral das penhoras, arrestos e sequestros, por exemplo, que passou de ato de registro em sentido estrito (conforme previsão expressa do art. 167, I, 5, da LRP) para ato de averbação com o advento do Código de Processo Civil de 2015 (art. 844). Não obstante o referido Código não ter revogado expressamente a alínea 5 do art. 167, I, da LRP, entendeu-se que suas disposições supervenientes prevaleceram em detrimento da lei especial.
Além disso, é importante destacar que o legislador da Lei nº 13.896/2020 foi extremamente técnico ao definir a natureza dos atos registrais elencados na referida legislação, indicando expressamente quais deveriam ser realizados por ato de registro em sentido estrito e quais deveriam ocorrer por averbação. Aliás, a atecnia da Medida Provisória surpreendentemente não ocorreu por ocasião da conversão em Lei. A exemplo, o art. 15 da referia Lei determinou que o cancelamento da afetação deve ocorrer por ato de averbação, diferenciando-o do ato de registro indicado para a constituição da garantia. Percebe-se então que, diversamente do que ocorre em algumas legislações, houve uma preocupação com a técnica das terminologias registrais, não sendo possível alegar que a redação teria apenas confundido os termos.
Deve-se levar em conta, ainda, que o patrimônio rural em afetação, na verdade, importa em uma mutação júri-real, na medida em que a afetação do imóvel gera uma segregação entre o patrimônio do titular e o afetado, logo, deixa de ser o titular originário proprietário do referido imóvel, passando o mesmo a estar sob a titularidade de um fundo, constituindo uma garantia, deixando o vínculo dominial com o titular originário.
O que ocorre, na verdade, é a divisão da mutação em fases. Inicialmente, o bem se separa do patrimônio do titular para ser afetado a uma destinação específica e, finda tal destinação, ele retorna ao patrimônio do titular anterior ou incorpora-se ao de outra pessoa. Assim, não se trata de mera garantia, como ocorre na hipoteca, penhor ou anticrese, sendo que, ainda nesses casos, o ato a ser praticado é de registro, quando se tratar de imóvel (art. 167, I, 2; 167, I, 4; 167, I, 11). Ocorre, por conseguinte, uma verdadeira transmutação do patrimônio que sai da esfera do titular originário, vincula-se a um fim específico, cumprindo sua destinação, retornando ou não ao patrimônio do titular anterior. Como é sabido, os atos translativos são essencialmente atos de registro.
Nessa linha de raciocínio, recorda-se que o registro em sentido estrito é o ato que constitui, modifica ou declara determinada posição jurídico-real na matrícula, conferindo-lhe eficácia e publicidade erga omnes. Tal assentamento reserva-se, em regra, a atos de oneração ou constituição de direitos reais, abarcando, por extensão, outros atos de natureza diversa, desde que respaldados em expressa previsão legal, tal como ocorre com a previsão do art. 9º da Lei nº 13.896/2020”.
“O que deve ficar claro é que a mutação gerada pela instituição do patrimônio de afetação é efetiva, na medida em há uma segregação patrimonial com a consequente mudança da titularidade do imóvel, o qual sai do patrimônio de um sujeito, que deixa de titulariza-lo, para ser afetado a determinado fim, sendo necessário, portanto, um ato de registro para constituir essa separação de patrimônios.
Conclui-se, portanto, que a tese mais adequada é de o patrimônio rural em afetação (bem como as demais espécies de patrimônio afetado) seja instituído por ato de registro em sentido estrito na matrícula do imóvel, na medida em que ocorre uma segregação entre patrimônio do titular e patrimônio afetado para o cumprimento de uma finalidade específica, qual seja, no caso, a de constituir uma garantia a determinado sujeito, além do fato da precisa dicção do art. 9ª da Lei nº 13.986/2020”.
Fonte: KÜMPEL, Vitor Frederico et. al., Tratado Notarial e Registral vol. V, Tomo II, 1ª ed, São Paulo: YK Editora, 2020, p. 2741/2765.