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Lei das cultivares – Lei 9.456/97

Vitor Frederico Kümpel e Ohanna de Freitas Perigo

Os avanços tecnológicos, além de provocarem mudanças sociais e comportamentais, acabam por suscitar a tutela jurídica, em razão de sua inegável repercussão nas modernas e complexas relações jurídicas. Assim, aproveitando o ensejo do artigo publicado há alguns dias sobre a patente de material genético, parece conveniente analisar a segunda grande frente da tutela biotecnológica: a proteção das cultivares1 e sua possível relação com o direito registral.

Em brevíssimo histórico, o fundamento da proteção de espécies vegetais pode ser encontrado no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS)2, da OMC – Organização Mundial de Comércio, do qual o Brasil é signatário. A seção 5 desse acordo, destinada às patentes de modo geral, possui uma previsão específica que faculta aos países membros a possibilidade de considerar plantas e animais como seres não patenteáveis, devendo, porém, conceder proteção às variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por um sistema sui generis eficaz, ou a combinação de ambos3.

Pois bem, nesta toada, a lei 9.279, de 14/5/96, LPI – Lei de Propriedade Industrial expressamente definiu que não são considerados como invenção ou modelo de utilidade “o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais” (art. 8º, IX) além de afastar a patenteabilidade do todo ou parte de seres vivos (art. 18).

Seguindo de forma coerente a prescrição do Acordo TRIPS indicado acima, o legislador brasileiro optou por conceder um tratamento específico às variedades de plantas4 por meio da lei das cultivares, criando um mecanismo sui generis de proteção a essa espécie de ser vivo, no mesmo sentido do que ficou definido no âmbito da OMC.

A lei 9.456, de 25/4/97 é a norma que institui a única forma de proteção de cultivares no Brasil, que se dá por meio de concessão do Certificado de Proteção de Cultivar5. A rigor de seu art. 2º, a LPC – Lei de Proteção de Cultivares tutela os direitos de propriedade intelectual das variedades vegetais; sendo o único mecanismo apto a obstar a sua livre utilização por terceiros.

A grosso modo, a cultivar pode ser compreendida como a variedade superior de qualquer gênero ou espécie vegetal, que seja claramente distinguível de outras variedades conhecidas, e cujas características sejam estáveis e homogêneas através das gerações6. Em outras palavras, trata-se de um melhoramento que torna a variedade da planta diferente das demais, seja pela coloração, resistência à pragas, doenças, quantidade de frutos, entre outros7.

Para atingir um melhoramento que seja estável e homogêneo em todos os ciclos de reprodução de um vegetal ou planta, isto é, para que exista uma cultivar, é preciso um grande investimento financeiro, tecnológico e temporal; pois é preciso acompanhar o ciclo de reprodução do ser vivo e eventualmente corrigir as imperfeições que forem encontradas durante este processo. Assim sendo, apenas haverá interesse da indústria e outras instituições no patrocínio desses estudos se for possível um retorno e um lucro, a longo prazo, compatíveis com os investimentos despendidos no processo. É aqui que se encontra a razão de ser da proteção da cultivar.

O Certificado de Proteção de Cultivar, bem móvel para fins legais, assegura ao titular – com exceção das hipóteses do art. 10 da LPC – a exclusividade na reprodução comercial daquele material durante o prazo de proteção, que será de 18 anos para as videiras e árvores; e 15 anos para as demais variedades. Nesse meio tempo, fica vedada a produção, comercialização ou oferecimento à venda da cultivar por parte de terceiros sem autorização do titular do direito8.

Essa proteção, além de contemplar os direitos de propriedade intelectual, serve de fomento para que instituições privadas invistam seus recursos na pesquisa e no melhoramento de espécies vegetais, já que têm assegurado um prazo de exploração comercial exclusiva do resultado desses estudos.

Para que seja concedido o Certificado de Proteção de Cultivar, o interessado obtentor deve requerer formalmente o pedido no órgão competente, indicando todas as suas características, os melhoramentos obtidos com as pesquisas, o extrato do objeto do pedido e outros documentos elencados no art. 14 da LPC. Na sequência o requerimento é publicado para apresentação de eventuais impugnações e emite-se o Certificado Provisório de Proteção, um título precário que assegura ao titular o direito de exploração da cultivar (art. 19, LPC).

Durante a análise do pedido, o órgão responsável pode formular exigências e solicitar mais documentos necessários ao julgamento do requerimento de proteção. O procedimento detalhado de solicitação do Certificado de Proteção de Cultivar é regulamentado pelo decreto 2.366, de 5/11/97, que também regula a atuação do SNPC – Serviço Nacional de Proteção de Cultivares, órgão criado pela LPI e competente para conceder ou não a tutela jurídica às espécies vegetativas.

Uma vez concedido o certificado de proteção, o obtentor fica obrigado a enviar ao órgão competente duas amostras vivas da cultivar protegida, que serão destinadas à manipulação e exame; e à coleção de germoplasma; essas amostras devem ser mantidas pelo titular enquanto durar a proteção, sob pena de cancelamento do certificado (art. 22, LPC).

Um ponto importante do assunto é a questão da publicidade. O art. 21 da LPC determina a publicação oficial da proteção concedida a cultivar em até quinze dias, contados da concessão do certificado. Essa publicação no Diário Oficial da União consiste numa atribuição específica do Serviço Nacional de Proteção de Cultivares, que deve divulgar os extratos de concessão dos pedidos de proteção, eventuais transferências de titularidade do Certificado, declaração de licenciamento compulsório e outros eventos atinentes à proteção das cultivares9.

A publicidade do Certificado de Proteção de Cultivar, assim como os demais documentos relacionados às patentes, é uma das formas de assegurar o direito do titular em explorar aquela espécie melhorada pelo obtentor. Ocorre, no entanto, que o conteúdo divulgado no Diário Oficial pode não produzir os efeitos esperados em relação à publicidade, pois há uma presunção de conhecimento de terceiros a respeito de seu conteúdo, mas que depende de uma conduta exclusiva (e ativa) dos interessados: consulta a respeito da existência ou não da referida proteção.

Nesse sentido, considerando a importância dos registros públicos e a segurança jurídica gerada pelos atos de seus oficiais, seria conveniente se cogitar na possibilidade de registro do Certificado de Proteção de Cultivar no RTD – Registro de Títulos e Documentos, onde se dá o registro de bens móveis, já que os direitos intelectuais precisam, de fato, de uma publicidade para serem conhecidos e oponíveis em face de terceiros.

O Registro de Títulos e Documentos é a serventia com atribuições amplas e subsidiárias, cujo registro tem por finalidade atestar a existência de documentos, conservar seu conteúdo e garantir a publicidade, evitando que terceiros aleguem ignorância a respeito dele10. Interessa-nos, no caso das cultivares, a questão da atribuição subsidiária (ou residual) dessa serventia, prevista no art. 127, parágrafo único da lei 6.015/73: “caberá ao Registro de Títulos e Documentos a realização de quaisquer registros não atribuídos expressamente a outro ofício”.

Essa atribuição residual é de natureza atípica, e acaba por tornar o rol dos títulos registráveis (art. 127, lei 6015/73) meramente exemplificativo, admitindo o assentamento de outros títulos ou documentos que atendam a dois requisitos: que não sejam de competência de outra serventia por determinação expressa; e cujo ingresso não seja “obstado por descumprimento de preceito legal”11.

Considerando, então, que o legislador não exigiu o registro do Certificado de Proteção de Cultivar em nenhuma serventia a não ser o próprio órgão competente (SNPC), há possibilidade de se requerer o seu registro no RTD baseado nessa atribuição residual.

Quanto aos efeitos desse registro, por certo, a conservação e a publicidade restrita estariam presentes, bem como seu caráter probatório. Entretanto, considerando a atual redação do art. 129, da lei 6.015/73 – que parece ser taxativa -, não seria possível exigir a oponibilidade em relação a terceiros, uma vez que as hipóteses indicadas nesse dispositivo estão especificamente delimitadas, sem contemplar situações abertas, nas quais poderiam ser inseridas o Certificado de Proteção de Cultivar.

Portanto, a possibilidade de registro do Certificado de Proteção de Cultivares no RTD é expressamente permita com fundamento na atribuição residual dessa serventia; o que seria discutível seria apenas a falta de produção de efeitos em relação a terceiros pela falta de disposição expressa da lei, mas que pode facilmente ser suprida pelo legislador. De qualquer forma, fica aqui consignado o entendimento de que esse assentamento, podendo produzir efeitos em relação a terceiros, seria valioso para a garantia dos direitos intelectuais da cultivares, dada a segurança jurídica e a publicidade decorrente dos registros públicos.


1 KÜMPEL, Vitor Kümpel – SÓLLER, Natália. Patente de Material Genético. In Migalhas, 30-04-2024, disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/registralhas/406403/patente-de-material-genetico.

2 Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights, disponível em: https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-trips_01_e.htm.

3 “3. Members may also exclude from patentability:

. plants and animals other than micro-organisms, and essentially biological processes for the production of plants or animals other than non-biological and microbiological processes. However, Members shall provide for the protection of plant varieties either by patents or by an effective sui generis system or by any combination thereof. The provisions of this subparagraph shall be reviewed four years after the date of entry into force of the WTO Agreement.”

4 BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Segunda Edição Revista e Atualizada. Lumen Juris, 2010, p. 369.

5 Art. 2º da lei 9.456/1997.

6 Art. 3º da lei 9.456/1997.

7 Definição apresentada no site do Ministério da Agricultura e Pecuária; disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/insumos-agropecuarios/insumos-agricolas/protecao-de-cultivar/cultivares-protegidas.

8 Arts. 2º, 9º e 11 da lei 9.456/1997.

9 Art. 3º, VII, Decreto nº 2.366/1967 (regulamento da Lei de Proteção de Cultivares).

10 KÜMPEL, Vitor – FERRARI, Carla Modina. Sinopses Notariais e Registrais: registro civil das pessoas jurídicas e registro de títulos e documentos. Vol. 3. 2ª ed. São Paulo: YK Editora, 2023, p. 99 e 100.

11 KÜMPEL, Vitor – FERRARI, Carla Modina. Sinopses cit. p. 106.


*texto retirado do Portal Migalhas.