EXTINÇÃO DO DIREITO À GRATUIDADE NO TRANSPORTE COLETIVO PARA IDOSOS

                                                                 Luiz Antônio de Souza[1]

A Prefeitura Municipal de São Paulo e o Governo Estadual extinguiram o direito à gratuidade no transporte coletivo para idosos na faixa entre 60 anos e 65 anos, medida que passa a valer a partir de 1º de janeiro de 2021. A medida, no Estado de São Paulo, veio por meio do Decreto Estadual nº 65.414/20. A lei municipal sancionada é a de nº 17.542, de 22 de dezembro de 2020, já em vigor, que, entre outras medidas, revoga a Lei nº 15.912, de 16 de dezembro de 2013. Somente continuarão a viajar gratuitamente em ônibus, trens e metrô, além dos ônibus intermunicipais da Região Metropolitana, os idosos acima de 65 anos, conforme garante a Constituição Federal e o Estatuto do Idoso, cujo art. 39, § 3º, dispõe que “No caso das pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, ficará a critério da legislação local dispor sobre as condições para exercício da gratuidade nos meios de transporte previstos no caput deste artigo”. A questão a ser debatida é a eventual inconstitucionalidade da medida.

Muitos irão invocar que esse direito é garantido apenas aos idosos acima de 65 anos, e que entre 60 e 65 anos, a concessão da gratuidade está no âmbito da discricionariedade administrativa. Mas é possível contrapor esse pensamento. Vejamos:

O STJ, no REsp 1.192.577/RS, entendeu que a condição de vulnerabilidade dos idosos é reconhecida na própria CF, ao dispor no art. 230 que “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”. Mais que isso, tem reconhecido aos idosos a condição de hipervulneráveis (REsp 1.793.332/MG).

Como o direito à vida é um direito fundamental, o direito ao envelhecimento e sua proteção[2], que é uma extensão do direito à vida e estão intrinsecamente ligados, tem a natureza de direito social (por força do Estatuto do Idoso) e fundamental (o direito à vida, ao idoso, abarca o envelhecer com dignidade). Inclusive a Constituição Federal, no art. 3º inciso IV, ao garantir como objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos, sem qualquer preconceito relativo à idade, autoriza a equiparação do direito ao envelhecimento digno aos direitos formalmente fundamentais por seu conteúdo e relevância – trata-se, pois, de direito fundamental material.

Além disso, o art. 10 § 1º inciso I garante ao idoso o direito de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários. Trata-se, mais amplamente, da liberdade pública relativa ao direito de locomoção, ou seja, garantia de ir e vir sem qualquer restrição de caráter urbanístico, e que engloba o direito de frequentar ambientes públicos fechados (direito de acesso arquitetônico), de percorrer ruas, praças e avenidas (direito de trânsito) e de utilizar-se, nesse trajeto, de meios de transporte público financeira e ergonomicamente acessíveis (direito a transporte acessível), que muitas vezes é restringido ou impedido em virtude da inadequação arquitetônica dos prédios, de concepções urbanísticas falhas e de desenho industrial impróprio dos veículos de transporte que circulam pela malha viária urbana, e ainda pelo valor da tarifa.

Na ADI 3.768-4/DF, o ministro Carlos Britto, ao votar pela constitucionalidade do art. 39 do Estatuto do Idoso, acentuou “o advento de um novo constitucionalismo fraternal ou, como dizem os italianos, ‘altruístico’, com ações distributivistas e solidárias”. Segundo o ministro, “não se trata de um direito social, mas de um direito fraternal para amainar direitos tradicionalmente negligenciados”.

Falta ainda um olhar para o Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei 13.146/15, que define, no art. 3º inciso IX, “pessoa com mobilidade reduzida”, entendendo assim toda aquela que tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentação, permanente ou temporária, gerando redução efetiva da mobilidade, da flexibilidade, da coordenação motora ou da percepção, incluindo os idosos.

Além disso, o art. 46 garante que o direito ao transporte e à mobilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida será assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, por meio de identificação e de eliminação de todos os obstáculos e barreiras ao seu acesso, e o art. 53 assegura o direito à acessibilidade à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, para que possa viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação social.

Diante disso, podemos concluir que o idoso tem direito fundamental à vida com dignidade, a envelhecer em estado de bem-estar, direito de locomoção, acesso arquitetônico, trânsito e transporte acessível, e por se tratar de pessoa com mobilidade reduzida, tem incorporado os direitos concedidos às pessoas com deficiência. E assim, como a Carta de 1988 institui o Estado Social Democrático de Direito, reconhecendo os direitos sociais como direitos fundamentais, não pode o Estado extirpar direitos fundamentais já conquistados, ou seja, proíbe-se a diminuição de proteção aos bens jurídicos fundamentais já alcançados e implementados em determinada sociedade. Logo, se o Estado diminui, restringe ou extingue direitos fundamentais, isso viola o princípio da proibição do retrocesso, violando-se o próprio Texto Constitucional.

Ingo Sarlet refere inexistir Estado de Direito sem segurança jurídica, razão pela qual é exigível a proteção (por meio de prestações normativas e materiais) contra atos – do poder público – violadores dos diversos direitos pessoais, garantindo a estabilidade da ordem jurídica[3]. Nesse sentido o STF enuncia que “O conjunto dos Direitos Sociais foi consagrado constitucionalmente como uma das espécies de direitos fundamentais, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado Democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal” (STF, ADI 5038).

Como decidiu o STF, “O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados”. […] (Ag. no RE 639.337/SP).

Portanto, na medida em que a Constituição Federal reconhece o idoso como vulnerável e detentor do direito à proteção, segurança e bem estar, e como o direito à gratuidade, por força de lei municipal (de 2013), é um direito social e fundamental que foi incorporado ao ordenamento, tal concessão afigura-se direito adquirido de natureza difusa, de todos os idosos entre 60 e 65 anos, daí porque pode-se considerar inconstitucional a nova legislação que suprimiu a gratuidade aqui considerada, por força da proibição do retrocesso social.

Ademais, as relações exigem condutas adequadas, que detenham um padrão, um standard de comportamento, ou seja, exige-se que toda e qualquer relação se faça por meio de condutas impregnadas de cooperação, probidade e lealdade. Essa concepção tem raízes no princípio da boa-fé objetiva, que é um standard de comportamento que deve vigorar conforme as expectativas da sociedade. E o comportamento com lealdade, dentro da expectativa e conforme os usos do tráfico, gera relações jurídicas de confiança, não somente relações morais.[4]

Assim, é exigível, nas relações, a observância dos deveres gerais de conduta, pautados pela boa-fé objetiva, sem o que estará instaurada a abusividade repudiada pelo sistema.[5]

Diante de algumas situações que se apresentam abusivas por quebrarem a expectativa, a boa-fé instaurada nas relações, o Direito proporciona o enfrentamento através da doutrina do venire contra factum proprium (teoria dos atos próprios), apta a reequilibrar a conduta dos parceiros nas relações sociais[6].

Ruy Rosado de Aguiar Júnior[7] releva a importância do tema, apto a reconduzir as relações ao status que os seus comportamentos anteriores ditaram: “A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte”.

Não há dúvida de que a revogação da gratuidade configura venire contra factum proprium, francamente abusiva.

Em 06 de janeiro de 2021 o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos da Força Sindical – SINDNAPI e outras entidades associativas ajuizaram ação civil pública[8] para restabelecer a gratuidade do transporte público para pessoas entre 60 e 64 anos, sustentando, em linhas gerais, que o artigo 3º do Decreto Estadual nº 65.414/2020 retirou a eficácia da Lei Estadual 15.187/2013. Argumentam que a revogação da gratuidade para idosos com faixa etária de 60 a 64 anos depende de lei e que o ato do Poder Executivo seria ilegal por violar o direito adquirido ao benefício tarifário. Em decisão liminar, o Juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo deferiu os efeitos da tutela provisória para manter a isenção de pagamento aos maiores de 60 anos.

Em 12 de janeiro de 2021, a Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu a liminar[9]. De acordo com a decisão, a liminar poderia acarretar lesão à ordem, economia e segurança públicas ao afastar do Poder Executivo estadual “seu legítimo juízo discricionário de conveniência e oportunidade de organização dos serviços públicos, o que inclui o transporte público”.

É certo que o art. 12 §1º da LACP – Lei 7.347/85 autoriza a suspensão da liminar ao dispor que a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, poderá o Presidente do Tribunal a que competir o conhecimento do respectivo recurso suspender a execução da liminar, em decisão fundamentada. Todavia, há necessidade de que haja juridicidade para tanto.

No caso, a liminar não causa grave lesão à ordem, à saúde e à segurança, isto porque a fundamentação espelhada no pedido de suspensão da liminar é que o subsídio subiu de cerca de 200 milhões/ano, quando instituído em 2014, para 600 milhões/ano (custo estimado pra 2021), ou seja, o único fundamento é a consideração de que tal gratuidade agravaria a situação fiscal.

Então, aqui há um confronto entre o interesse público primário e o secundário. Este último é meramente o interesse patrimonial da administração pública, que deve ser tutelado, mas não pode sobrepujar o interesse público primário, que é a razão de ser do Estado e sintetiza-se na promoção do bem-estar social. Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello: “O Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles.” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19ª edição. Editora Malheiros. São Paulo, 2005, pág. 66.) […] (REsp 1356260/SC, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, j. 07/02/2013, DJe 19/02/2013).

No caso, a ancoragem para a manutenção do benefício é o fato de que temos um direito fundamental efetivado, que não pode ser afastado por receber a blindagem de “direito adquirido coletivo” e de “proibição do retrocesso”. Nesse sentido, Gomes Canotilho diz que “o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial”[10].

Dessa maneira, a discricionariedade administrativa não pode ser invocada quando direitos fundamentais estão em pauta, razão pela qual a manutenção da gratuidade tornou-se uma obrigação vinculada, não passível de revogação, a não ser que fossem editadas medidas alternativas ou compensatórias que promovessem a devida modulação, e que não existem.

Há, pois, ofensa aos princípios constitucionais da proibição do retrocesso, da razoabilidade e da proporcionalidade.

 

[1] Luiz Antônio de Souza, Procurador de Justiça (28º Procurador de Justiça da Procuradoria de Interesses Difusos e Coletivos); Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Professor Assistente-Doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Professor do Curso Damásio e do Instituto Damásio de Direito; Professor dos Cursos de Pós-Graduação da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, do COGEAE – Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC/SP, da ESA – Escola Superior de Advocacia. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Urbanístico do Instituto Damásio de Direito chancelado pela Faculdade de Direito IBMEC-SP.

[2] o art. 8º do Estatuto do Idoso proclama que o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social

[3] SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de Retrocesso, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004. p. 4.

[4] Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, Tomo XXXVIII, 3ª edição, Rio de Janeiro, Borsoi, 1972, § 4.242, p. 321.

[5] Paulo Luiz Netto Lobo, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, Saraiva, São Paulo, 1991, p. 145, falando sobre a boa-fé que deve nortear os indivíduos nas suas relações, considera que “A boa-fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais, interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa em conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé que podemos chamar de boa-fé de comportamento”.

[6] Cf. KÜMPEL, Vitor Frederico. Teoria da Aparência no Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007.

[7] Na obra A Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor, 1ª edição, Rio de Janeiro, Aide, 1991, p. 240 e seguintes.

[8] Sob nº 1000277 – 05.2021.8.26.0053

[9] Feito nº 2002288 – 52.2021.8.26.0000

[10] Fachin, Luiz Edson, Comentários ao Código Civil, Direito das Coisas, volume XV, Saraiva, 2003, p. 374.

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