Artigo: Responsabilidade civil dos notários e registradores após o Tema 777

Vitor Frederico Kümpel e Natália Sóller

A responsabilidade civil dos notários e registradores já foi alvo de alterações legislativas e debates jurisprudenciais. O tema 777 do STF, de repercussão geral, sanou inúmeros pontos que eram discutidos acerca da responsabilização do estado e do agente delegado, mas também gerou uma nova discussão: com o tema 777, a responsabilidade do Estado é obrigatoriamente primária (direta) ou é possível ajuizar a ação de reparação de danos diretamente em face do agente delegado?

Vamos traçar rapidamente uma cronologia do tema, desde a primeira redação do art. 22 da lei 8.935/1994:

Art. 22. Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos.

O texto normativo original, portanto, estabelecia que não era necessária a demonstração de dolo ou culpa para que notários e registradores fossem responsabilizados por prejuízos decorrentes de atos inerentes à sua função, praticados por eles próprios ou por seus auxiliares. A verificação de dolo ou culpa se restringia, à época, à possibilidade de o titular da serventia exercer o direito de regresso contra seus prepostos.

Em 2015, a lei 13.137 alterou a redação do art. 22, passando a dispor:

Art. 22.  Os notários e oficiais de registro, temporários ou permanentes, responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, inclusive pelos relacionados a direitos e encargos trabalhistas, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos. (Redação dada pela lei 13.137, de 2015)

Nesse momento, houve um acréscimo da responsabilização para os interinos e o dano passou a ser considerado inclusive ao relacionado a direitos e encargos trabalhistas. Já em 2016, a lei 13.286 deu nova redação ao texto (atualmente vigente):

Art. 22. Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso. (Redação dada pela lei 13.286, de 2016).

Parágrafo único. Prescreve em três anos a pretensão de reparação civil, contado o prazo da data de lavratura do ato registral ou notarial. (Redação dada pela lei 13.286, de 2016).

Essa modificação alterou de forma significativa o conteúdo da norma, passando a condicionar a responsabilização de notários e registradores pela reparação de danos causados a terceiros à comprovação de culpa ou dolo. O direito de regresso contra os prepostos continuou garantido, contudo, a exigência de demonstração do elemento subjetivo (culpa ou dolo) passou a ser aplicável também à responsabilização direta do titular, afastando, assim, a lógica da responsabilidade objetiva.

Contudo, em 2020, foi julgado o tema de repercussão geral RE 842.846/SC, que novamente alterou o entendimento:

Tema 777: O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.

A partir desse entendimento, consolidou-se a tese de que o Estado responde objetivamente pelos prejuízos decorrentes de atos praticados por notários e registradores. Uma vez efetuada a reparação, caberá ao Estado ajuizar ação regressiva contra o titular da serventia, desde que comprovada a existência de dolo ou culpa. O art. 22 da lei 8.935/1994 permanece em vigor, mantendo a natureza subjetiva da responsabilidade dos notários e registradores, sendo que o Tema 777 do STF acrescentou, de forma complementar, a responsabilidade objetiva do Estado nesses casos.

Assim, inaugurou-se um novo debate jurisprudencial, discutindo-se se a vítima do dano é obrigada a acionar o Estado de forma primária ou se poderia optar por acionar o titular comprovando o dolo e a culpa.

O entendimento é divergente entre alguns estados. Em São Paulo, o Tribunal se posiciona no sentido de que a responsabilidade do Estado é objetiva e direta, ou seja, não é subsidiária.

Recurso inominado da FESP contra r. sentença que a condenou ao pagamento de indenização por danos materiais e morais, em razão de vício na prestação de serviços notariais – falha na prestação de serviço notarial incontroversa e comprovada – legitimidade passiva do ente público e inexistência de litisconsórcio necessário – responsabilidade objetiva direta (não subsidiária) do Estado – dever de indenizar, com possibilidade de regresso em face do agente responsável – Tema 777 do C. STF – existência de danos morais – razoabilidade do valor fixado (R$5.000,00) – negado provimento ao recurso da FESP – alteração da r . sentença de ofício apenas para adequação quanto à correção monetária e juros referentes aos danos materiais, em se tratando de repetição de valor de natureza tributária.

(TJ/SP – Recurso Inominado Cível: 1004332-57.2022.8 .26.0281 Itatiba, Relator.: Fernando Bonfietti Izidoro, Data de Julgamento: 31/07/2023, 2ª turma Civel e Criminal, Data de Publicação: 31/7/2023)

Recurso Inominado. 1ª turma Recursal da Fazenda Pública. Ação de danos materiais e morais. Autora pleiteia a devolução de valores pagos indevidamente ao 1º Cartório de Notas de Votuporanga/SP . Fazenda Pública do Estado de São Paulo sustenta, em sede recursal, ausência de comprovação do dano material e alega responsabilidade meramente subsidiária. Tese não acolhida. Conforme entendimento consolidado pelo STF no Tema 777 da repercussão geral (RE 842.846/SC), a responsabilidade civil do Estado pelos atos praticados por notários e registradores é objetiva e direta, cabendo-lhe a reparação integral ao terceiro prejudicado, com possibilidade de ação regressiva contra o delegatário mediante comprovação de dolo ou culpa . Aplicação do art. 22, parágrafo único, da lei 8.935/94. Documentos acostados aos autos evidenciam que a autora pagou R$ 14.472,00, valor superior ao efetivamente devido (R$ 10.273,16), resultando em cobrança indevida de R$ 4.198,84. Ainda que não juntado o recibo completo, o próprio requerido confirma o valor oficial, e há reconhecimento de fraudes praticadas no cartório, corroboradas por matérias jornalísticas . Comprovados o dano, a conduta lesiva e o nexo de causalidade, incide a responsabilidade objetiva da Administração Pública nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição Federal. Inexistência de excludentes de responsabilidade, como culpa exclusiva da vítima. Presentes os requisitos legais, impõe-se a restituição integral do valor indevidamente cobrado . Recurso não provido.

(TJ/SP – Recurso Inominado Cível: 10119847220248260664 Votuporanga, Relator.: Rubens Hideo Arai – Colégio Recursal, Data de Julgamento: 28/8/2025, 1ª turma Recursal de Fazenda Pública, Data de Publicação: 28/8/2025)

Já no Rio de Janeiro, o entendimento é o de que não se verifica na Tese firmada no Tema 777 nenhum óbice para que se ajuíze a ação diretamente em face do titular, se houver a comprovação de dolo ou culpa, e que a responsabilidade do Estado é objetiva, mas subsidiária.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL. FALHA NA ATIVIDADE NOTARIAL. DEMANDA EM FACE DO TABELIÃO. CHAMAMENTO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. IMPOSSIBILIDADE. De acordo com o disposto no art. 236 da CRFB/88, os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público . No tocante ao tema, por ocasião do julgamento do RE 842846/SC, com repercussão geral reconhecida relativa à Tese 777, o STF manifestou entendimento no sentido de que: “O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.”. No entanto, depreende-se do acórdão exarado no referido julgamento inexistir óbice ao ajuizamento da ação diretamente em face do notário, oficiais de registro e seus prepostos por força da responsabilidade civil subjetiva de tais delegatários estabelecida no art. 22 da lei 8.935/1994, com redação atribuída pela lei 13.286/16. Nesse diapasão não há que se falar em afronta ao efeito vinculante da decisão proferida pelo STF em casos como o presente, na medida em que facultado ao prejudicado ajuizar ação em face do delegatário, que possui responsabilidade subjetiva, ou do Estado, que possui responsabilidade objetiva, mas subsidiária. Precedentes deste e. TJ/RJ. DESPROVIMENTO DO RECURSO.

(TJ/RJ – AI: 00778950320218190000, Relator.: des(a) . ANDRE EMILIO RIBEIRO VON MELENTOVYTCH, Data de Julgamento: 12/5/2022, VIGÉSIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 18/5/2022)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE PRECEITO COMINATÓRIO CUMULADA COM INDENIZATÓRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA DO TABELIÃO, QUE PODE RESPONDER DE FORMA DIRETA E PESSOAL PELOS DANOS CAUSADOS NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO CARTORÁRIO. ART. 22 DA LEI 8 .935/94. RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS 842.846/SC E 1.027 .633/SP (TEMAS 777 E 940 DO STF) QUE NÃO AFASTARAM A POSSIBILIDADE DE A AÇÃO INDENIZATÓRIA SER DIRIGIDA DIRETAMENTE AO NOTÁRIO OU AO OFICIAL REGISTRADOR, TAMPOUCO FIXARAM EXPRESSAMENTE A APLICAÇÃO DA TEORIA DA DUPLA GARANTIA NO CASO DE RESPONSABILIZAÇÃO DESSES AGENTES PÚBLICOS ESPECÍFICOS. DESCABIMENTO DO CHAMAMENTO AO PROCESSO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, UMA VEZ QUE A SUA RESPONSABILIDADE, QUANTO AOS DANOS CAUSADOS PELOS NOTÁRIOS E OFICIAIS DE REGISTRO, NO EXERCÍCIO DE SUAS ATIVIDADES, É SUBSIDIÁRIA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO EM PARTE. 1 . Cuida-se de agravo de instrumento interposto contra decisão proferida pelo juízo da Quinta Vara Cível Regional de Madureira que, em indenizatória, manteve a competência do juízo cível para o conhecimento e julgamento da demanda, diante da divergência existente na jurisprudência a respeito da natureza consumerista dos serviços notariais e de registro, bem como indeferiu o chamamento ao processo requerido, em virtude da ausência de solidariedade legal ou contratual entre o delegatário notarial e o Estado do Rio de Janeiro, salientando que a responsabilidade do ente estatal é subsidiária, consoante entendimento sedimentado pelo C. STF no julgamento do RE 842.856 (TEMA 777). Por fim, rejeitou as preliminares de ilegitimidade ativa e passiva, pois se confundem com o mérito e com ele serão apreciadas, assim como assentou que a prejudicial de prescrição será apreciada na sentença. […] 20. Na hipótese dos autos, não se discute a responsabilidade do Estado, mas sim, a responsabilidade direta do próprio Tabelião em decorrência da má prestação do serviço delegado. 21. O art. 22 da lei 8.935/1994 prevê, expressamente, a possibilidade de o particular lesado ajuizar a ação diretamente contra os notários e registradores. 22. Nesse contexto, não se pode declarar a ilegitimidade passiva do responsável pelo cartório e conferir ao Estado a responsabilidade exclusiva e direta por responder acerca de danos eventualmente causados a particulares, uma vez que a parte lesada não precisa, necessariamente, acionar primeiramente o Estado, tendo em vista que não se aplica a tese da dupla garantia para os notários e registradores, assim como estes não são se constituem servidores públicos, mas particulares em colaboração. 23. No entanto, incumbirá a parte demandante provar o dolo ou a culpa do titular do cartório, considerando que a responsabilidade do notário ou registrador é subjetiva. 24. A lei 13 .286/16, ao alterar o art. 22 da lei 8.935/94, estabeleceu que a responsabilidade civil dos notários e registradores é subjetiva. 25 . Descabimento do pedido de chamamento do processo, tendo em vista a responsabilidade subsidiária (e não solidária) do Estado quanto aos danos causados pelos notários e oficiais de registro, no exercício de suas atividades, cabendo ao Estado, como visto, o direito de regresso contra o causador do dano em caso de dolo ou culpa. 26. Recurso conhecido e provido em parte.

(TJ/RJ – AGRAVO DE INSTRUMENTO: 00334529320238190000 202300246324, Relator.: des(a) . MÔNICA MARIA COSTA DI PIERO, Data de Julgamento: 30/7/2024, PRIMEIRA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 8ª CÂMARA CÍVEL), Data de Publicação: 1/8/2024)

No estado do Mato Grosso do Sul, por outro lado, verifica-se uma divergência recente. Em julgado de 2024, o Tribunal se manifestou no sentido de que o Tema 777 não afasta a responsabilidade direta dos titulares e que o Tema 940 é inaplicável1.

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DE DANO PATRIMONIAL C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO – LEGITIMIDADE PASSIVA DE EX-TABELIÃO/DELEGATÁRIO – AÇÃO AJUIZADA CONTRA O ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL E O EX-TABELIÃO/DELEGATÁRIO – TEMA 777 DO STF NÃO AFASTA A RESPONSABILIDADE DIRETA E SUBJETIVA DOS NOTÁRIOS E TABELIÃES – FIXOU-SE A RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO PELOS DANOS CAUSADOS POR ESTES POR DOLO OU CULPA NO EXERCÍCIO DE SEU MUNUS – TEMA 940 DO STF TAMBÉM INAPLICÁVEL – DECISÃO REFORMADA – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

(TJ/MS – Agravo de Instrumento: 14078187120248120000 Campo Grande, Relator.: Des. Amaury da Silva Kuklinski, Data de Julgamento: 25/7/2024, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: 29/7/2024)

Porém, houve divergência num julgado de 2025, no sentido de que, a partir do Tema 777, os tabeliães e os registradores “são partes ilegítimas para figurarem diretamente nas ações relacionadas aos atos praticados no exercício de suas funções”.

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS C/C PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA CAUTELAR – EMENDA À INICIAL PARA CONVERTER O FEITO PARA REPARAÇÃO DE DANOS – PROCURAÇÃO DE PODERES DE COMPRA E VENDA – ILEGITIMIDADE PASSIVA DO TABELIÃO PARA RESPONDER POR DANO RELACIONADO A SUA ATIVIDADE – TEMAS 777 E 940, DO STF – REPERCUSSÃO GERAL -VALOR DA CAUSA – MANTIDO – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS – INCIDÊNCIA SOBRE O VALOR DA CAUSA – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. I. CASO EM EXAME 1. Apelação interposta pelos autores contra sentença que declarou a ilegitimidade do Tabelião para figurar na presente demanda de Ação de Exibição de Documentos c/c Pedido de Tutela de Urgência Cautelar, convertida em Reparação de Danos . II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. Discute-se no presente recurso: a) a legitimidade passiva do tabelião para responder por dano relacionado a sua atividade; b) a correção do valor da causa; e c) o valor dos honorários advocatícios sucumbenciais. III . RAZÕES DE DECIDIR 3. Sobre a responsabilidade dos tabeliães e registradores, o Plenário do STF fixou tese no sentido de que: “O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.” Tema 777/RG (RE 842.846) . 4. O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa (Tema 777/STF); assim, os tabeliães e os registradores são partes ilegítimas para figurarem diretamente nas ações relacionadas aos atos praticados no exercícios de suas funções. 5 . Estabelece o art. 292, inc. V, do CPC, que no caso de ação de indenização, o valor da causa será o quantum pretendido. 6 . Se a parte autora, ao emendar a inicial, indicou qual é o valor da sua pretensão reparatória (somatório dos danos alegadamente sofridos), este será o critério adotado para a fixação do valor da causa. 7. Inexistindo condenação e também proveito econômico na hipótese de extinção sem resolução do mérito, o único critério legal restante é o valor da causa, que foi adequadamente aplicado na sentença.. IV. DISPOSITIVO 8. Apelação Cível conhecida e não provida.

(TJ/MS – Apelação Cível: 08021707020228120020 Rio Brilhante, Relator.: des . Paulo Alberto de Oliveira, Data de Julgamento: 16/4/2025, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: 23/4/2025)

Não existe, por enquanto, portanto, uma confluência da jurisprudência sobre o tema. Por um lado, pode-se interpretar que, em análise conjunta dos Temas 777 e 940, a ação de reparação de danos deve ser proposta apenas em face do Estado, não sendo possível que o titular figure no polo passivo da ação. Esse entendimento alinha-se no fundamento de que o Estado é o responsável pela fiscalização dos serviços públicos e responde perante o cidadão independentemente do dolo ou culpa.

Por outro lado, diante da omissão do Tema 777 sobre a responsabilidade do Estado ser direta, abre-se margem também para entender que é possível que o particular escolha contra quem ingressar, não estando restrito obrigatoriamente a mover a reparação do dano em face do Estado. Nesse caso, cabe ao particular decidir o que melhor lhe convém para garantir a reparação de seu dano.

Para nós, a melhor posição teria sido a do voto divergente do ministro Marco Aurélio quando do julgamento do tema, que entendia não ser cabível a aplicação do § 6º do art. 37 da CF à atividade notarial e registral, na medida em que existe uma regra específica no art. 236 da CF definindo que a atividade é prestada por particular em delegação e que cabe à lei própria a sua disciplina (lei 8. 935/1994). Nesse sentido, o ministro entendeu que deveria ser seguido o art. 22 da referida lei, respondendo o titular de forma direta e subjetiva, e a responsabilidade do Estado, por sua vez, seria também subjetiva, “no caso de falha do Poder Judiciário em sua função fiscalizadora da atividade cartorial”2. Essa, inclusive, já era a posição que vinha se consolidando nos julgamentos do STJ.

Contudo, tendo prevalecido o Tema 777, entende-se que ele deve ser interpretado conjuntamente ao tema 940, na medida em que o julgamento de ambos é extremamente próximo (2019) e, quando a tese final do tema 777 sobre a responsabilidade dos notários e registradores foi proferida, toda a matéria sobre a legitimidade da ação por danos causados por agente público já estava afetada pelo tema 940.

Além disso, em 2021 outra mudança importante ocorreu na lei de improbidade administrativa – alterada pela lei 14.230 – que passou a definir ser ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário somente ações ou omissões dolosas (e não mais culposas), que enseje perda patrimonial3. Nessa linha de interpretação conjunta e alinhada entre a jurisprudência e as normas, nas hipóteses de improbidade administrativa, ainda, não haveria dever de regresso quando não constado dolo do titular4.

Mostra-se imprescindível a preservação da harmonia e da coerência do sistema jurídico, bem como a busca por uma efetiva uniformização da jurisprudência pátria, de forma a assegurar não apenas o devido respeito aos temas de repercussão geral e às teses firmadas pelo STF, mas também a plena observância da legislação vigente, evitando-se contradições interpretativas, insegurança jurídica e tratamentos desiguais perante situações idênticas.


1 Tema 940: “A teor do disposto no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado, prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

2 Plenário reafirma jurisprudência sobre responsabilidade civil do Estado pelas atividades de cartórios. STF, 27.02.2019. Disponível aqui.

3 Lei de Improbidade Administrativa com a alteração:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

4 Para maior aprofundamento, cf. LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; KÜMPEL, Vitor Frederico; MADY, Fernando Keutenedjian. Responsabilidade civil dos notários e registradores por danos decorrentes das atividades de tratamento de dados Lima. In LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; KÜMPEL, Vitor Frederico; MACIEL, Renata Mota (Coordenadores). Estudos Avançados em Direito Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2024. p. 61 e ss.

Fonte: Portal Migalhas