Vitor Frederico Kümpel, Natália Sóller e Fernando Keutenedjian Mady
A reforma administrativa, entre seus objetivos, buscou redefinir a estrutura remuneratória dos servidores públicos, instituindo novos níveis de carreira e limites remuneratórios. Seu propósito central, conforme divulgado, é o de “dotar o Estado de maior capacidade, qualidade e velocidade” na prestação dos serviços públicos, ou seja, garantia da eficiência, vetor constitucional do art. 37, caput, CF.
No conjunto de mudanças legislativas apresentadas, inclui-se uma PEC voltada à alteração do art. 236 da lei maior, com o objetivo de modificar as regras relativas à percepção de emolumentos e à aposentadoria compulsória dos titulares das serventias notariais e registrais.
Entretanto, as alterações sugeridas podem gerar reflexos maiores do que aparentam à primeira vista, produzindo impactos estruturais na forma de exercício da atividade notarial e registral e podendo gerar efeitos adversos em vez de benefícios.
Toda e qualquer mudança dessa natureza deve ser cuidadosamente analisada quanto aos seus reflexos sistêmicos. A CF/88, enquanto norma fundamental do ordenamento jurídico, estabelece as bases do regime jurídico das atividades de notas e de registro no país. Assim, qualquer modificação em seu texto tem o potencial de alterar a própria natureza da delegação e de romper o equilíbrio normativo cuidadosamente construído.
Alterar a Constituição deveria ser sempre uma medida excepcional por gerar reflexos drásticos. Seus efeitos irradiam-se por todo o sistema jurídico, razão pela qual devem ser profundamente ponderados e fundamentados, sob pena de comprometer princípios estruturantes podendo impactar na coerência institucional do modelo vigente.
- Modificações do art. 236, CF
A proposta ampliou a redação dos §1º e 2º do referido dispositivo, mas sem grandes implicações práticas, na medida em que a lei 8.935/1994 e a lei 10.169/00 já regulamentam o conteúdo elencado nos dois primeiros parágrafos. As alterações mais relevantes, que geram impactos diretos na sistemática atual da atividade, encontram-se nos §4º e §5º acrescidos ao art. 236.
O §4º estabelece um teto remuneratório anual de treze vezes1 o valor do limite remuneratório definido no inciso XI do art. 37, ou seja, treze vezes 90,25% dos proventos mensais em espécie de um ministro do STF. O §5º, por sua vez, institui a aposentadoria compulsória ao agente delegado quando atingir 75 anos de idade.
- Argumentos suscitados nos debates sobre a reforma
Em análise dos debates sobre a reforma administrativa3 disponibilizado oficialmente pela Câmara dos Deputados, é possível perceber que o argumento favorável às alterações propostas ao art. 236 foram defendidos unicamente pelo deputado Pedro Paulo, e segundo ele:
Por último, os cartórios. Vamos tratar dos cartórios, sim. Os emolumentos de cartório é preço público. É preço público que pesa para o cidadão e pesa para as empresas. Vamos tocar nesse ponto. Vamos disciplinar os emolumentos. Vamos tratar, por exemplo, da questão da transparência dos cartórios na informação sobre os recebimentos. Vamos deixar muito mais claro esse jogo, no diálogo, conversando com as instituições. Os cartórios têm que estar dentro da reforma administrativa – p. 203.
Em sentido oposto, contrários à proposta de reforma do art. 236, se manifestaram José Paulo Baltazar Junior, Moema Locatelli Belluzzo:
O Presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil discursou na Comissão Geral sobre a reforma administrativa. Informou que desde março de 2024 o protesto de Certidões de Dívida Ativa recuperou mais de R$ 69 bilhões sem custo para o orçamento. Ressaltou que, desde 2007, foram mais de 3 milhões de inventários e 1,3 milhão de divórcios extrajudiciais, além de R$ 104 bilhões executados em alienação fiduciária entre 2022 e 2024. Também enfatizou que os cartórios praticaram mais de 208 milhões de atos gratuitos desde 1997 e concluiu que essas instituições oferecem eficiência, reduzem a judicialização e devem ser vistas como parte da solução na reforma administrativa – p. 283 – José Paulo Baltazar Junior (sic).
A Diretora Executiva da Associação dos Notários e Registradores do Brasil discursou na Comissão Geral sobre a reforma administrativa. Relembrou experiências passadas de prestação direta da atividade notarial e registral pelo Estado, que resultaram em filas e ineficiência, e defendeu a manutenção do modelo privado como essencial para a eficiência do serviço. Além disso, alertou que muitos valores pagos pelos usuários são repassados a outros órgãos, como Defensoria Pública e bancos, e sugeriu que a reforma administrativa considere a eliminação desses custos extras.
Entretanto, essa determinação dos concursos vem sendo paulatinamente aplicada. Temos Estados que só aplicaram até hoje um concurso público. O avanço do concurso público gera confusão. Por vezes, pode parecer que notários e registradores são servidores públicos, mas não o são. No art. 39 da Constituição, que trata dos servidores públicos, a atividade notarial e registral não está incluída ali. Portanto, o concurso público não cria um vínculo funcional com o Estado. Notários e registradores não são servidores públicos, e cartório não é repartição pública. Os notários e os registradores assumem o cartório por sua conta e risco. Isso quer dizer que não contam com garantias próprias dos servidores: estabilidade, férias remuneradas, etc. Toda a estrutura de um cartório, desde o prédio, mobiliário, equipamentos, folha de salários, tributos, é do bolso do notário e registrador aprovado em um dos concursos públicos mais rígidos do Brasil. – p. 302 – Moema Locatelli Belluzzo (sic).
Verifica-se que os debates em torno da proposta de alteração foram limitados, com reduzido espaço para manifestações e discussões qualificadas sobre o tema. Todavia, a mudança sugerida demanda uma análise muito mais profunda e abrangente, diante do potencial de repercussão em todo o sistema jurídico e institucional das atividades notariais e registrais.
Aparenta-se não ter havido o devido amadurecimento técnico e político da proposta, uma vez que a inclusão dos cartórios no escopo da reforma administrativa foi defendida exclusivamente por um único parlamentar nos debates, e os fundamentos específicos para a modificação do art. 236 da CF também não devidamente explicitados ou demonstrados nos próprios considerandos da PEC.
- Emolumentos e a realidade financeira dos cartórios – percepções equivocadas
Conforme se depreende das manifestações do deputado Pedro Paulo, os principais pontos que motivaram a inclusão das serventias extrajudiciais na Reforma Administrativa foram a questão dos emolumentos e a suposta falta de transparência em sua percepção.
Cumpre destacar, desde logo, que os emolumentos são valores fixados por lei – nos termos do art. 2º da lei 10.169/00 -, ou seja, definidos pelo próprio Poder Público. Nessas normas, estão expressamente previstos diversos repasses obrigatórios a órgãos e instituições públicas, como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e entidades de assistência social, a exemplo das Santas Casas, entre outras definidas por lei.
Durante os debates da reforma, tais repasses foram, de forma equivocada, denominados “penduricalhos”, como se representassem distorções ou encargos indevidos ao Estado. No entanto, tratam-se de parcelas que constituem importante fonte de receita pública – em outras palavras, os emolumentos já integram o fluxo de recursos do próprio Estado, promovendo uma verdadeira retroalimentação do sistema. A sua distribuição, portanto, obedece a uma lógica funcional e legalmente estruturada.
Ademais, há plena transparência quanto à arrecadação e à destinação dos emolumentos, sendo essas informações amplamente disponibilizadas ao público por meio do portal Justiça Aberta, mantido pelo CNJ.
Existe uma percepção equivocada acerca do faturamento das serventias extrajudiciais, o que leva ao entendimento (igualmente errôneo) de que a fixação de um teto remuneratório implicaria que os valores excedentes das serventias superavitárias representariam uma significativa fonte de receita adicional ao Estado – capaz, inclusive, de ser redirecionada para outras finalidades ou para a redução de despesas públicas. Embora esse argumento não tenha se apresentado de forma expressa nos debates, acredita-se que seja o que fundamentou a alteração do art. 236 da CF nos moldes propostos.
É de conhecimento geral que algumas serventias realmente apresentem elevado faturamento, contudo trata-se de casos isolados dentro do panorama nacional. Dados da ARPEN-SP4 demonstram que o faturamento bruto dos cartórios brasileiros – isto é, sem considerar os repasses obrigatórios e os custos operacionais de gestão – revela uma realidade bastante heterogênea e distante da imagem de riqueza generalizada que comumente se atribui ao setor. Segundo os dados, o faturamento está distribuído da seguinte forma:
5.265 têm receitas de até cinco mil reais por mês;
1.427 têm receitas entre cinco mil e dez mil reais por mês;
2.835 têm receitas entre dez mil e cem mil reais por mês;
629 geram entre cem mil e quinhentos mil reais por mês;
103 cartórios geram mais de quinhentos mil reais por mês.
Ainda, número recente indica que 2.602 dos cartórios no país são “considerados deficitários, que não se sustentam com a própria receita e dependem de fundos de compensação, custeados pelos cartórios maiores”5. Como se sabe, um dos repasses dos emolumentos é direcionado aos Fundos de custeio das serventias deficitárias – que são a maioria no país – e dependem disso para seu funcionamento.
Como exemplo disso, em julho de 2025, no Paraná, “o Funarpen – Fundo de Apoio ao Registro Civil das Pessoas Naturais garantiu a sobrevivência de 166 Cartórios deficitários no Paraná, que desembolsou, no mesmo mês, R$ 1.934.499,69 para assegurar a renda mínima dessas unidades”6.
É fácil constatar, portanto, que a fixação de um teto remuneratório para as serventias extrajudiciais está longe de representar solução para o equilíbrio fiscal do país. Ao contrário, tal medida apenas transferiria encargos ao Estado, ampliando suas despesas e comprometendo a autonomia e a eficiência do sistema notarial e registral.
- Mudança do regime da atividade notarial e registral – não adequação da redação proposta
Nos termos do art. 236, caput, da CF – que foi, inclusive, mantido na PEC – os serviços notariais e de registro são prestados por particulares por delegação do Poder Público, não se caracterizando como cargo ou emprego público. O agente delegado particular é definido por Hely Lopes Meirelles como:
Particulares que recebem a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob a permanente fiscalização do delegante. Esses agentes não são servidores públicos, nem honoríficos, nem representantes do Estado; todavia, constituem uma categoria à parte de colaboradores do Poder Público. Nessa categoria encontram-se os concessionários e permissionários de obras e serviços públicos, os serventuários de ofícios não estatizados, os leiloeiros, os tradutores e intérpretes públicos, as demais pessoas que recebem delegação para a prática de alguma atividade estatal ou serviço de interesse coletivo7.
A atividade notarial e registral é exercida sob a forma de delegação estatal de natureza especial, uma vez que, embora possua caráter público, sua execução se dá em regime privado. O delegatário atua, portanto, como verdadeiro gestor da unidade – com independência funcional, nos termos do art. 28 da Lei nº 8.935/19948 -, sendo integralmente responsável pela administração da serventia, contratação e remuneração de funcionários, manutenção da estrutura física e tecnológica, aquisição de equipamentos e pela qualidade dos serviços prestados à população.
A previsão legal assegurando a percepção integral dos emolumentos aos notários e registradores decorre, justamente, da independência funcional que lhe é atribuída. A independência o torna responsável por toda a gestão da serventia, respondendo o titular pessoalmente pelas despesas de custeio, investimento, funcionários, etc. O titular, inclusive, assume responsabilidade civil, criminal e trabalhista de forma pessoal pelos atos praticados na atividade9.
Ao se instituir um teto remuneratório – isto é, ao impedir a percepção integral dos emolumentos – compromete-se diretamente a independência funcional do delegatário, uma vez que a liberdade de gestão dos próprios recursos passa a ser restringida. Com isso, perde-se uma das características essenciais da figura do particular em colaboração com o Poder Público: a assunção de risco decorrente da autonomia administrativa e financeira da serventia.
É o chamado Princípio da Simetria: há o recebimento integral dos emolumentos, na medida em que o Estado não custeia nada e atribui todos os gastos ao titular.
Muitas vezes, inclusive, o titular, ao assumir uma serventia há muito tempo vaga, investe do seu bolso para depois conseguir reaver os gastos com a prática dos atos e continuar aprimorando a estrutura física e a capacitação dos funcionários.
Observe-se, por exemplo, a situação prática da Pandemia. Na ocasião, inúmeros serviços públicos recrudesceram, pois o Estado foi onerado com todos os gastos em razão do Covid-19, por outro lado, os cartórios aprimoraram seus serviços com as plataformas digitais e continuaram a prestação normalmente, sem qualquer gasto extra para o Estado. Pelo contrário, a continuidade dos serviços possibilitou a continuidade dos repasses de emolumentos.
É inconcebível dissociar o direito à percepção integral dos emolumentos do risco assumido pelo delegatário: ambos são elementos indissociáveis e proporcionais à responsabilidade que lhe é atribuída na prestação de um serviço público essencial.
Além disso, a percepção integral dos emolumentos estimula a probidade e transparência, na medida em que não haverá qualquer interesse do titular em distorcer os gastos de custeio do serviço e ele sempre irá buscar a melhoria e a qualidade dos atos praticados. A limitação de emolumentos sem considerar os portes das serventias compromete a probidade e a boa prestação.
A previsão de aposentadoria compulsória é igualmente típica do regime jurídico aplicável aos servidores públicos, e não aos agentes delegados, cuja natureza é eminentemente privada. A adoção de tais limitações – teto remuneratório e aposentadoria compulsória – descaracteriza o modelo jurídico de delegação previsto na Constituição, pois transfere ao Estado o ônus e o risco inerentes à atividade, subvertendo o equilíbrio original do sistema.
Portanto, é evidente o descompasso entre a manutenção do caput do art. 236 e os §4º e 5º inseridos na PEC. Não se trata tão somente de estabelecer um teto remuneratório e uma regra de aposentadoria, a proposta de alteração legislativa desvirtua toda a natureza da atividade e seu regime jurídico.
Para tornar as limitações factíveis, seria necessário alterar a formatação do regime jurídico da atividade, que não mais se caracteriza como delegação a particular com a instituição de teto remuneratório e aposentadoria compulsória. Conciliar a redação anterior com os novos parágrafos geraria um “Frankenstein” jurídico, que não funciona nem de um jeito e nem de outro, criando falhas graves na manutenção da atividade.
- Confiança e custos da atividade notarial e registral – a alteração de regime jurídico realmente compensa?
Não obstante à crítica aos novos parágrafos, questiona-se até que ponto é benéfica a readequação do regime da atividade notarial e registral?
As alterações na forma como foram propostas, como visto, geram a quebra da natureza do regime em forma de delegação a um particular. O que não foi considerado na PEC, contudo, é que a atividade notarial, desde seu início no Brasil, foi exercida em caráter privado, como uma espécie de delegação do Poder Público, desde 1530 – com Carta Régia a Martim Alfonso de Souza – delegando toda a administração da Capitania, inclusive a responsabilidade por atos notariais10.
O modelo de delegação ao particular, que assume os riscos da atividade e gerencia toda a serventia, vigora há quase 500 anos, o que evidencia que é uma estrutura funcional.
Um levantamento da Datafolha de 2023 revelou que 76% dos usuários estão satisfeitos com os serviços prestados pelos cartórios e manifestam o desejo de que um número ainda maior de documentos possa ser emitido diretamente nessas unidades, presentes em todos os municípios do país. Os cartórios brasileiros lideram os índices de confiança, relevância e qualidade entre os serviços públicos e privados, ocupando a primeira colocação em comparação com outros 14 órgãos públicos avaliados11.
Além disso, durante os debates da Reforma, foram apresentados dados que comprovam a expressiva arrecadação e a relevante economia gerada ao Estado pelas serventias extrajudiciais. Trata-se de instituições nas quais a população deposita elevado grau de confiança, justamente porque seus titulares são dotados de fé pública – elemento que confere legitimidade, segurança e eficiência ao sistema notarial e registral.
Diante desse contexto, impõem-se algumas indagações: teria sido realizado, de fato, um estudo estatístico consistente que fundamentasse a proposta da PEC? E mais: a alteração sugerida não comprometeria a qualidade dos serviços, bem como a confiança e a segurança jurídica que eles proporcionam à sociedade?
O principal diferencial do atual modelo de autonomia funcional reside na lógica de corresponsabilidade: quanto mais eficiente e qualificado o serviço, maior o desenvolvimento da serventia – e, por consequência, maior também o retorno financeiro ao Estado. Limitar uma dessas frentes significa, inevitavelmente, limitar a outra, pois ambas são interdependentes. A restrição proposta, portanto, não contraria os próprios objetivos declarados da Reforma?
Os riscos assumidos pelos titulares permaneceriam os mesmos, com igual carga de responsabilidades e obrigações, mas haveria inevitável redução de receita. Essa diminuição, por sua vez, repercutiria negativamente na qualidade dos serviços, na confiança social depositada nas serventias e, em última análise, na arrecadação do próprio Estado.
Vamos supor, por outro lado, que eventuais ajustes na redação da proposta levem o Estado a assumir diretamente os riscos da atividade, descaracterizando por completo a delegação a particulares e transformando os titulares em servidores públicos – conforme parece ser a pretensão implícita da PEC. Assim, questiona-se: isso não acarretaria um aumento expressivo de custos ao próprio Estado?
Atualmente, o risco da atividade recai integralmente sobre o delegatário, que é o responsável pela gestão administrativa e financeira da serventia, pela contratação e remuneração de funcionários, bem como por todas as despesas de manutenção e investimento. Caso o Estado reassuma a execução direta desses serviços, romperá um modelo historicamente consolidado – em vigor há quase 500 anos – e passará, pela primeira vez, a arcar com todos os ônus da atividade.
É importante ressaltar que o sistema notarial e registral sempre funcionou sem qualquer custo para o erário, representando um caso singular de eficiência administrativa: o Estado colhe os resultados positivos da atividade, sem despender recursos públicos para sua manutenção. Transformar os titulares em servidores públicos implicaria a criação de despesas permanentes e imprevisíveis, sem que existam estudos técnicos, dados empíricos ou experiências anteriores que validem tal mudança.
Em suma, corre-se o risco de criar um problema inexistente – onerando o Estado e fragilizando um modelo que, até aqui, se mostrou funcional, sustentável e socialmente confiável.
- Uma terceira via adequada
Os cartórios podem, de fato, ser contemplados em outra Reforma Administrativa – não pela via da equiparação indevida aos servidores públicos, mas a partir do reconhecimento de suas particularidades e da natureza delegada da função. Para que haja uma reforma nesse sentido, seria primordial uma análise prévia, a qual não foi realizada para a proposição da PEC.
Um eventual teto remuneratório pode ser discutido, desde que adequado às especificidades da atividade, considerando fatores como a demanda local, o volume de atos praticados e a realidade econômica de cada região, e não simplesmente com base no art. 37 da CF/88, que regula situações de natureza diversa, qual seja a dos servidores públicos.
É necessário haver um estudo cauteloso, baseado em dados numéricos, a ser realizado com técnica e precisão – e não simplesmente uma alteração direta do art. 236 da Constituição Federal sem a análise prévia de risco. A atividade possui uma natureza sui generis, e não pode ser alterada de forma drástica sem o estudo prévio, sob pena de decaimento do serviço prestado e prejuízo direto à população e ao Estado.
Os cartórios, por terem capilaridade, atendem a demanda local, que é extremamente variável conforme a localidade da serventia, na medida em que existem cidades mais populosas e com maior tráfego jurídico. Não é possível estabelecer uma única faixa fixa. Os cartórios, inclusive, são organizados em Classes pelo próprio CNJ para fins de adoção de padrões mínimos de tecnologia de acordo com o seu faturamento (Provimento nº 74/2018). Esse é um critério, por exemplo, mais lógico e que teria sentido para garantir que as serventias se mantivessem funcionais. Mas, repise-se que é imprescindível uma análise mais detalhada e cautelosa, baseada em estudo estatístico.
E o excedente arrecadado em cartórios superavitários deve permanecer dentro da própria atividade, revertendo-se em verba para o fundo das serventias deficitárias a ser convertido melhorias estruturais, tecnológicas e de gestão de outros cartórios. Essa redistribuição interna reduziria as discrepâncias econômicas entre as serventias, fortalecendo o sistema, otimizando o serviço e valorizando tanto a função quanto o Estado que dela se beneficia. Não pode esse excedente se tornar uma verba de utilização livre do Estado, sem qualquer transparência e sem um objetivo que não seja melhorar a própria prestação do serviço à população.
Também é legítima a discussão sobre a fixação de um limite etário para o exercício da delegação, desde que não se confunda com aposentadoria compulsória – incompatível com a natureza jurídica do agente delegado, que não é servidor público. Cria-se, de fato, uma situação jocosa ter uma pessoa de idade muito avançada prestando um serviço com fé-pública; a limitação de idade é positiva para a própria atividade, reforçando a confiança da população no titular.
Assim, o limite de idade pode servir à renovação institucional e à manutenção da confiança social, sem ferir a autonomia nem a estabilidade do modelo, apenas deve ser adequado para não se confundir com aposentadoria compulsória, bastando configurar uma regra de tempo de permanência na delegação.
O equívoco nesta reforma administrativa está em tomar como referência as poucas serventias superavitárias em detrimento de todo um sistema que, historicamente, se mostra funcional, autossustentável e eficiente, prestando serviços de alta relevância pública e dotados de fé pública. A atividade notarial e registral é, de fato, custosa, mas o é justamente porque exige infraestrutura, tecnologia e qualificação profissional compatíveis com o nível de segurança jurídica que oferece.
Assim, para os cartórios integrarem eventual reforma administrativa, isso deve ocorrer apenas futuramente, de forma mais oportuna, após estudo inteligente, sistêmica e embasado em análise prévia de impacto, voltada a corrigir distorções e promover equilíbrio entre as serventias – e não a desestruturar um modelo que há quase quinhentos anos garante eficiência, confiança e desjudicialização no Brasil.
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Sejam felizes!
1 XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 41, 19.12.2003)
2 PEC. Disponível aqui. [Acesso em 04.11.2025].
3 Debates sobre a Reforma Administrativa. Disponível aqui. [Acesso em 04.11.2025].
4 FALCÃO, Joaquim. Quanto ganha um cartório? In ARPEN-SP, São Paulo, 03.11.2009. Disponível aqui. [Acesso em 04.11.2025].
5 SILVA, Marcelo Lessa da. Reforma administrativa e os cartórios: Eficiência, desoneração e governança pública. In Migalhas, s. l., 10.09.2025. Disponível aqui. [Acesso em 04.11.2025].
6 ACESSORIA ANOREG BR. Crença de Cartórios milionários não resiste a dados: déficit atinge quase 170 serventias no Paraná. In ANOREG-BR, s. l., 10.10.2025. Disponível aqui. [Acesso em 04.11.2025].
7 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 75.
8 Art. 28. Os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício de suas atribuições, têm direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia e só perderão a delegação nas hipóteses previstas em lei.
9 Há um descompasso, inclusive, com o Tema 777 do STF.
10 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. 2. ed. São Paulo: YK, 2022. vol. 3. p. 71-72.
11 Assessoria de Comunicação Anoreg/BR. Serviços oferecidos por cartórios são os mais bem avaliados, aponta pesquisa Datafolha. In CNB, s. l., 16.01.2023. Disponível aqui. [Acesso em 04.11.2025].
Fonte: Portal Migalhas

