Artigo: A ata notarial de arrematação: Paradoxo do sistema do título e modo

Vitor Frederico Kümpel e Fernando Keutenedjian Mady

O presente artigo visa examinar a ata de arrematação, documento derradeiro nos procedimentos extrajudiciais de caráter satisfativo no registro de imóveis, e aprofundar a compreensão de sua natureza jurídica, seu papel na formalização da aquisição da propriedade e os impactos legais decorrentes de seu registro. Além disso, serão exploradas as especificidades da ata de arrematação em comparação com a escritura pública.

Após a publicação da lei 14.711, de 31/10/23, denominada de “Novo Marco Legal das Garantias”, a ata notarial passou a ser um dos títulos a ser assentado no registro de imóveis, no caso de arrematação e adjudicação de imóveis nos leilões públicos extrajudiciais.

O procedimento de execução extrajudicial pode resultar em arrematação por meio de leilões, adjudicação pelo credor ou venda direta1. O título formalizado por esses atos notariais, hábil para o registro, pode trazer certos paradoxos para o sistema do título e modo2, a ser analisado.

No Brasil, os atos notariais são praticados exclusivamente por tabeliães de notas ou seus prepostos no exercício de suas funções e dentro dos limites legais. Esses atos resultam em instrumentos públicos, documentos lavrados e autorizados pelos notários com fé pública, destinados a adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir negócios ou atos jurídicos. A lei 8.935/94, em seu art. 6º, define o ato notarial como a formalização jurídica da vontade das partes, intervenção em negócios e atos jurídicos para dar-lhes forma legal, e autenticação de fatos, tudo com a fé pública conferida pelo Estado ao tabelião.3 Ressalte-se que, anteriormente, a instrumentalização do ato notarial era realizada por meio de Escritura Pública, enquanto atualmente passou a ser feita por meio de ata notarial, além da Escritura mencionada.

A história do notariado moderno se inicia na Baixa Idade Média, nos séculos XII e XIII d.C., originado da Escola de Bologna e a Summa artis notarial.4 Atualmente, os atos notariais são classificados em exclusivos ou concorrentes – sem exclusividade. Os atos notariais exclusivos podem ser atos protocolares ou extraprotocolates.

Os atos protocolares são aqueles lançados nos livros de notas, dentre os quais se inserem as atas notariais, as escrituras públicas, as procurações e os testamentos públicos. Nesse sentido, formaliza-se, com fé-pública, a manifestação de vontade das partes em ato ou negócio jurídico em que há a intervenção notarial.

Por outro lado, os atos extraprotocolares referem-se àqueles em que a intervenção do tabelião e a prática notarial se dão em documentos não contidos nos livros notariais, como o reconhecimento de firma, chancela ou letra e a autenticação.5

Os atos notariais concorrentes, que não são exclusivos dos tabeliães de notas, podem ser praticados por diversos agentes. Exemplos desses atos incluem a certificação do implemento ou frustração de condições e outros elementos negociais, bem como a mediação, conciliação e arbitragem.6

A teoria do negócio jurídico está diretamente relacionada à atuação dos notários, pois a eles compete a tarefa de formalizar, de maneira opcional ou obrigatória, a vontade das partes envolvidas. Essa vontade se concretiza em atos e negócios jurídicos, e o notário é responsável por orientar os interessados sobre os requisitos legais necessários para que esses atos ou negócios produzam seus efeitos jurídicos.

Primeiramente, é importante distinguir fato jurídico de ato jurídico. O fato jurídico é qualquer ocorrência que impacta o mundo jurídico, gerando efeitos legais. Ele é o grande gênero que inclui tanto o ato quanto o negócio jurídico, daí ser o título do Livro III da Parte Geral. O ato jurídico, por sua vez, é definido pela vontade humana com o objetivo de obter certos efeitos legais desejados. É toda manifestação lícita de vontade destinada a criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica. O negócio jurídico é uma categoria específica de ato jurídico caracterizada pela manifestação de vontade. É crucial destacar a importância da manifestação de vontade humana, que pode criar, modificar ou extinguir direitos, pretensões, ações ou exceções, com a intenção de produzir efeitos no mundo jurídico.

Insere-se a ata notarial como um instrumento de constatação de fatos presentes, inclusos nos atos da atividade notarial. Na ata notarial, o tabelião registra tudo o que observa, ouve, verifica e conclui através de seus próprios sentidos (visão, audição, tato, olfato e paladar), sem influências externas. Nesse sentido, caracteriza-se como ato protocolar, pelo qual o notário narra, de forma objetiva, fiel e detalhada fatos naturais ou jurídicos presenciados ou verificados pessoalmente, em seu Livro de Notas com fé pública.7 Deste modo, distingue-se da escritura pública, que tem por função precípua formalizar juridicamente a vontade de uma ou mais partes, em atos ou negócios jurídicos, os quais fazem prova plena8, isto é, enquanto a escritura pública inclui uma declaração de vontade destinada a formalizar um negócio jurídico com fé pública, a ata notarial relata apenas fatos, sem qualquer declaração de vontade e podendo não constituir nenhum direito. Em outras palavras, a ata notarial documenta fatos para proteger terceiros, enquanto a escritura pública descreve uma relação jurídica.

O presente documento público é ato notarial exclusivo do tabelião de notas. O art. 384 do CPC reconhece a ata notarial como um meio de prova fundamental.

Antes do novo “Marco Legal das Garantias”, a competência para a lavratura da ata notarial era, em regra, definida pela livre escolha do requerente, independentemente do domicílio das partes ou da localização dos bens objeto do ato ou negócio. No entanto, a ata notarial deve ser lavrada por um tabelião de notas devidamente investido em delegação, que não pode praticar atos fora do município para o qual foi designado.

Porém, o legislador ordinário criou algumas exceções, em que a competência é exclusiva, como a ata notarial de usucapião ou de adjudicação compulsória via extrajudicial, em que a atribuição é do tabelião do município onde situado o imóvel ou a sua maior parte.9 Ambas as hipóteses de exceção são atos sem valor de confirmação ou estabelecimento de propriedade, servindo apenas para a instrução de requerimento extrajudicial de usucapião ou adjudicação compulsória para processamento perante o registrador de imóveis.10 Essas atas corroboram o título, mas não o criam, embora devessem constituir um título por si só.

Igualmente, a cobrança de emolumentos pelo notário por essas atas seguirá as faixas de preço da tabela de emolumentos para escrituras públicas de transmissão ou constituição de direitos reais, até que o legislador estadual defina uma forma específica de cobrança.11

O sistema criou as atas de arrematação na via extrajudicial, instrumentalizando o lance vencedor em leilões extrajudiciais como negócio derradeiro do procedimento de execução de imóveis hipotecados ou alienados fiduciariamente em garantia.12 É importante ressaltar que a lavratura de uma ata notarial de arrematação pelo tabelião de notas, contendo dados de intimação do devedor e do garantidor, bem como os autos do leilão e constituindo título hábil de transmissão da propriedade ao arrematante a ser registrado na matrícula do imóvel, representa uma novidade trazida pela lei 14.711/23. Essa inovação configura um tertium genus entre a Escritura Pública e a Ata Notarial. Assim, ao mesmo tempo que atesta fatos, o tabelião formaliza a vontade e descreve os elementos essenciais do negócio jurídico, tudo em um único instrumento notarial.13

Concluído o procedimento de execução via extrajudicial de hipoteca ou alienação fiduciária, e havendo lance vencedor, os autos do leilão e o processo de execução extrajudicial da hipoteca serão distribuídos ao tabelião de notas com circunscrição delegada que abranja o local do imóvel para lavratura de ata notarial de arrematação, que conterá os dados da intimação do devedor e do garantidor e dos autos do leilão.

Em sendo a ata notarial a constatação de fatos, por parte do tabelião, no mundo fenomenologicamente aferível, não resta dúvida de que a ata notarial é um ato-fato jurídico. Aquilo que o tabelião constata, no exato sentido da sua pura descrição, independe do elemento volitivo, muito embora no campo dos efeitos a ata notarial possa eventualmente ter contorno de ato ou de negócio jurídico.

No caso específico da ata notarial de arrematação, descreve a manifestação de vontade de um sujeito que arremata um bem perante o leiloeiro, configurando, assim, um negócio jurídico indireto. Ou seja, o tabelião certifica a ocorrência do evento diante do leiloeiro, mas não declara a vontade; ele apenas descreve a manifestação da vontade apresentada ao leiloeiro.

Ao contrário das atas notariais usuais, a ata de arrematação representa uma modalidade distinta, uma vez que o tabelião indiretamente corporifica o negócio jurídico. Nesse contexto, a ata descreve o negócio concluído, reconhecendo que a pessoa expressou sua vontade, adquiriu o imóvel e efetuou o pagamento. Dessa maneira, é correto afirmar que a ata de arrematação possui natureza de negócio jurídico indireto.

Enquanto as atas notariais em geral não são registráveis por descreverem apenas fatos, esta ata, por descrever um negócio jurídico, ainda que indireto, é registrável, tendo por base os art. 221 e 167, inciso I, item 48, que dispõe:

“Art. 167 – No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos.

I – o registro:   

48) de outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis, ressalvadas as hipóteses de averbação previstas em lei e respeitada a forma exigida por lei para o negócio jurídico, a exemplo do art. 108 da lei 10.406, de 10/1/02 (Código Civil).”  

Conforme se extrai da disposição do art. 48, os “outros negócios jurídicos de transmissão”, não se referem ao conteúdo, mas à forma, que é representada pela ata notarial de arrematação – um negócio jurídico indireto.

Na realidade, a ata notarial deveria ter sido originalmente incluída no inciso I do art. 221 da LRP. No entanto, em vez disso, foi inserida no art. 7º-A, §2º, como parte de uma categoria mais ampla. Veja:

Art. 7º-A, §2º, LRP. O tabelião de notas lavrará, a pedido das partes, ata notarial para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais aplicáveis e certificará o repasse dos valores devidos e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado, o que, quando aplicável, constituirá título para fins do art. 221 da lei 6.015, de 31/12/73 (lei de registros públicos), respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto.

Embora o §2º trate da ata de constatação da verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais, dentro dessa categoria estão abrangidas ocorrências de negócios translativos, como a arrematação. É importante ressaltar que, do ponto de vista intrínseco, a ata de arrematação mantém sua natureza como meio de prova, mas adquire a força e a importância de um título registrado no registro imobiliário.

A atribuição do tabelião de notas é similar àquela das atas notariais de usucapião e adjudicação compulsória, sendo responsabilidade do tabelião da circunscrição onde o imóvel está localizado. No entanto, se houver mais de um tabelionato de notas na área, a atribuição está sujeita à prévia distribuição.

A cobrança de emolumentos ainda não está resolvida por lei estadual, mas é provável que siga um modelo semelhante ao das atas notariais de usucapião e adjudicação compulsória na via extrajudicial.

A aquisição da propriedade pelo arrematante é originária, o que confere à ata notarial um caráter declaratório, embora a torne oponível erga omnes. A ata notarial formaliza a arrematação da propriedade do imóvel hipotecado ou consolidado no patrimônio do credor fiduciário..

A lei 14.711, de 31/10/23, estabelece, em seu art. 9º, § 11, que a data de consolidação da propriedade na execução da alienação fiduciária equivale à data de expedição da ata notarial de arrematação após o leilão público bem-sucedido, no contexto da execução da hipoteca pela via extrajudicial. Portanto, se o imóvel estiver alugado, o locador pode denunciar o contrato de locação com um prazo de trinta dias para desocupação, tendo o poder de solicitar a imissão na posse ao Poder Judiciário, mesmo antes do registro.14

Da mesma forma, os direitos reais de garantia ou constrições, inclusive penhoras, arrestos, bloqueios e indisponibilidades de qualquer natureza, incidentes sobre o direito real de aquisição do fiduciante não obstam a consolidação da propriedade no patrimônio do credor fiduciário e a venda do imóvel para realização da garantia na hipoteca.

É importante observar que a ata notarial pode estar incorporando a propriedade inter partes do direito espanhol, uma vez que não é oponível perante terceiros até ser registrada no fólio real.15 O sistema espanhol é baseado no princípio do título, embora adote o princípio da separação, semelhante à Alemanha. Os efeitos inerentes aos direitos reais, segundo o princípio do consenso no sistema espanhol, são expressos em duas etapas. A primeira consiste no contrato em si, caracterizado como um negócio jurídico obrigacional, e um acordo de vontade voltado para a transferência do direito real (traditio), que surge como um negócio jurídico dispositivo.

O sistema espanhol, assim como o alemão, concede proteção aos terceiros, principalmente em nome da fé pública registral. Esse sistema adota o princípio da causalidade entre o negócio jurídico obrigacional e o jurídico-real, e entre este e o registro. A causalidade visa proteger os terceiros, pois as hipóteses de invalidação do registro por inexatidão são limitadas pela regra protetiva do terceiro hipotecário, cuja inscrição não será afetada por causas relativas aos titulares anteriores na cadeia dominial que culminou na constituição do seu direito.

A regra protetiva do terceiro hipotecário pelo sistema espanhol leva à conclusão de que a inscrição do título no registro não apenas gera sua oponibilidade erga omnes, mas também implica uma espécie de efeito resolutivo, extinguindo eventuais direitos reais inter partes incompatíveis ou contraditórios anteriormente constituídos sobre o imóvel.

A presente ata de arrematação, ao ser prenotada no protocolo do registro de imóveis da circunscrição do imóvel, assim como a Carta de Arrematação Judicial, não é obstada pela indisponibilidade, pois representa uma espécie de alienação forçada capaz de promover o cancelamento indireto de penhoras, arrestos e outros gravames, assemelhando-se ao efeito resolutivo no sistema espanhol.

A transmissão da propriedade ocorre por meio do título – ata de arrematação -, conforme previsto na legislação. O registro é declaratório e não constitui condição para a imissão na posse pelo arrematante nos leilões públicos extrajudiciais.

A ata notarial de arrematação pode configurar-se como uma nova exceção ao título e modo no sistema, contribuindo para a publicidade do título complexa pela primeira vez no país, o que requer uma análise mais detalhada.


1 Lei nº 14.711, 30 de outubro de 2023, art. 9º, §§ 9º, 10 e 11; e Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, arts. 27, §§ 7º e 8º, 30 e 37.

2 CC, art. 1.227 e 1.245; LRP, art. 172.

3 A autoria do ato notarial pode também ser de cônsules, os oficiais substitutos dos tabeliães de notas, os interinos ou os interventores.

4 Cf. V. Kümpel e C. M. Ferrari, Tratado de direito notarial e registral, vol. 3, 2ª ed., São Paulo, YK, 2022.

5 Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, art. 7º, caput e incisos.

6 Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, art. 7º-A, caput e §§.

7 Cf. F.K. Mady; S. L. F. Rocha, Usucapião extrajudicial, Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico, Porto Alegre, v. 16, n. 91, p. 5-29, ago./set. 2020, e a Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, art. 7ª, III, e o CPC, art. 384.

8 CC, art. 215; e Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, art. 7ª, I.

9 Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 216-A, I, e 216-B, § 1º.

10 Código Nacional de Normas, arts. 402, §  3º e 440-G, § 2º.

11 Código Nacional de Normas, arts. 423, I, e 440-M.

12 Lei nº 14.711, de 31 de outubro de 2023, art. 9ª.

13 LOPES, Leandro Lima. In KÜMPEL, Vitor Frederico, MIRANDA, Caleb Matheus Ribeiro de, FERRO Jr., Izaías Gomes (coords.), CARVALHO, Thaíssa Hentz de (org.), Comentários à Lei das Garantias (Lei nº 14.711/2023): implicações Extrajudiciais, São Paulo, YK Editora, 2024.

14 Lei 9.154, de 20 de novembro de 1997, art. 27, § 5º e 11 c.c. Lei 14.711, de 31 de outubro de 2023, art. 9º, § 11.

15 Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 167, I, “26”.

*texto retirado do Portal Migalhas.