A indisponibilidade do bem em razão de processos de execução federal, promovida em favor da Fazenda Pública Nacional, suas autarquias e fundações, se estende aos casos de adjudicação e arrematação?

“A penhora nos processos de execução federal, promovida em favor da Fazenda Pública Nacional, suas autarquias e fundações, gera automaticamente a indisponibilidade do imóvel, conforme disposto no art. 53, §1º, da Lei nº 8.212/1991.

Tal fato implica, por consequência, até o eventual cancelamento da constrição judicial, o juízo de qualificação negativo de títulos que tenham como objeto a disposição e oneração destes imóveis. Interessante ressaltar que apenas incide o art. 53, §1º da mencionada lei caso o imóvel esteja efetivamente penhorado, isto é, caso a penhora não tenha sido levada à averbação por força de execução fiscal da dívida ativa da União, não há que se falar em indisponibilidade legal do bem. Esse foi o argumento utilizado na decisão do Conselho Superior da Magistratura, dispondo que a medida administrativo-tributária de arrolamento fiscal tem natureza cautelar, não significando por si só, a indisponibilidade do bem, pois, após o arrolamento fiscal, o art. 64, §§3º e 4º da Lei nº 9.532/97 autorizam a alienação ou oneração do bem, apenas sujeitando à comunicação ao órgão fazendário[1].

Caso o imóvel se encontre penhorado por força de processo de execução federal e, portanto, indisponível, resta a análise se a indisponibilidade atinge apenas os atos de disposição praticados pela vontade do titular do bem, ou se estende também aos casos de alienação forçada, como a arrematação e a adjudicação.

É salutar que o ato da decretação de indisponibilidade de bens tem o fito de obstar que o devedor ou executado aliene, por ato de vontade, o seu patrimônio em evidente prejuízo em face de credores[2]. A jurisprudência administrativo-correcional reconhece que a indisponibilidade decorrente do art. 53, §1o, da Lei n° 8.212/91 incide apenas sobre a alienação voluntária[3], de forma que é admitido o juízo de qualificação positivo de carta de arrematação judicial de imóveis indisponíveis nos termos do referido dispositivo legal, antes mesmo de eventual cancelamento da constrição judicial averbada no fólio real. Assim, a indisponibilidade prevista no §1º do art. 53 é relativa, na medida em que alcança, exclusivamente, o titular do domínio, restringindo o pleno exercício do direito de propriedade titularizado pelo devedor[4].

Desta forma, a indisponibilidade do imóvel está ligada à limitação do poder do titular do domínio de dispor voluntariamente do bem, excluindo-se situações de disposição não voluntária, isto é, a indisponibilidade não impede o registro de alienação decorrente de hasta pública – arrematação e adjudicação -, mas tão somente das disposições e onerações voluntárias, como a venda, a dação em pagamento, a permuta, etc.[5].

O Conselho Nacional de Justiça, ao regulamentar a Central Nacional de Indisponibilidade, editou o Provimento nº 39, de 25 de julho de 2014, onde foram estabelecidas regras especiais para os registros de alienação judicial e averbação de constrições judiciais sobre imóveis com indisponibilidade do art. 53 da Lei nº 8.212/1991 e as determinadas judicialmente. Nestes casos, o registro da alienação procederá independentemente de quaisquer procedimentos registrais se referida alienação for oriunda do mesmo juízo que determinou a indisponibilidade ou a que distribuído o inquérito civil público e a posterior ação deste decorrente.

Segundo o art. 16 do Provimento nº 39 do CNJ, também é autorizado o registro da alienação judicial quando consignada no título a prevalência da alienação judicial em relação à restrição oriunda de outro juízo ou autoridade administrativa a que foi dada ciência da execução. Ausente a expressa menção sobre a prevalência da alienação judicial em relação às constrições oriundas de outro juízo ou autoridade administrativa a que foi dada ciência da execução, incumbe ao registrador paralisar o registro e comunicar o juízo que expediu o título de alienação, para complementação da informação, suspendendo-se a prenotação por 30 dias contados da efetivação dessa comunicação[6].

Aparentemente, trata-se de uma condicionante para o registro da alienação judicial, acerca da menção expressa no juízo do qual emanou a alienação judicial, sobre a prevalência desta sobre a indisponibilidade antes averbada. No entanto, O Conselho Superior da Magistratura de São Paulo já decidiu que tal menção no título é dispensável, visto que a prevalência da alienação judicial é “ínsita à própria expedição da carta de arrematação”; na sequência, a decisão ainda afirma que “a finalidade precípua da carta é viabilizar o registro da venda forçada. Seria de todo incongruente que o Juízo em que efetuada a hasta pública expedisse carta de arrematação ou de adjudicação, se não fosse para que arrematante ou adjudicante pudesse levá-la a efetivo registro”[7].

A prevalência da alienação judicial em desfavor da indisponibilidade determinada por outros juízos ou autoridade administrativa, visa viabilizar o registro da venda forçada, sobretudo, porque, caso contrário, o arrematante estaria impossibilitado de registrar a arrematação.

Nesse sentido, também seria incongruente permitir que o imóvel seja levado à hasta pública com o pagamento pelo interessado do preço e, em desconformidade, obstar o seu registro por constrições anteriores, cujo pagamento deveria ser feito em juízo. A arrematação, neste caso, é perfeita e acabada; a expedição da carta de arrematação e adjudicação indica que as demais questões foram supridas.

Não poderia ser diferente. Toda economia prima por isso. Não se pode desprestigiar aquele que arremata em hasta pública imóvel, dando, por consequência, quitação à dívida de outro. Caso contrário, inviabiliza todo sistema de execução de crédito, a fim de desprivilegiar aquele que arremata em face do executado. Aliás, o simples ato de registro da alienação judicial não acarreta, a rigor, prejuízos dos que em seu favor foi declarada a indisponibilidade, pois o crédito destes fica sub-roga-se no preço da arrematação, sem alteração alguma na ordem de preferência[8]. Assim, ao mesmo tempo em que é resguardado o interesse dos beneficiários da indisponibilidade, na medida em que poderão satisfazer-se à custa do produto da arrematação, também é contemplado o tráfego jurídico[9].

Na jurisprudência, houve discussão se as restrições que limitam e oneram o imóvel ainda persistem após a arrematação, e se o arrematante teria o direito de dispor desse bem, mesmo com as constrições que acarretam a indisponibilidade voluntária.

O Conselho Superior da Magistratura já decidiu no sentido de que, após arrematado o imóvel em execução forçada, as indisponibilidades anteriores à hasta pública perdem sua eficácia. Desse modo, o arrematante poderia, voluntariamente alienar o imóvel a terceiros, com o cancelamento expresso ou não das restrições. Isso porque, o registro da arrematação não tem o condão de cancelar diretamente e de maneira autônoma a averbação das constrições precedentes, mas sim de modo indireto, desempenhando o papel de cancelamento.

Nesse sentido, Afrânio de Carvalho[10] ensina que o cancelamento pode se dar de dois modos: o direto, no qual depende de averbação negativa, cancelando as onerações no imóvel, e o indireto, que seria a consequência do registro subsequente de alienações judiciais forçadas, como é o caso da adjudicação e arrematação. Inclusive, tanto pareceres da Corregedoria Geral[11] quanto decisões do Conselho Superior da Magistratura[12], julgaram no sentido do cancelamento direto não ser pressuposto necessário à posterior alienação voluntária, na medida em que na qualidade de arrematante judicial, é rompida a vinculação entre o bem e as obrigações pessoais pretáritas.

No momento em que o bem objeto da ordem restritiva foi transmitido a terceiro de forma legal e válida (arrematação), não há razão para perdurar a eficácia da indisponibilidade, tendo em vista que essa caracteriza-se como uma espécie de ônus real vinculado a uma situação pessoal do titular do direito de propriedade, “transmitido o bem a terceiro, por ato não voluntário do proprietário, como no caso de alienação judicial, cessa a eficácia imediara de tal indisponibilidade”.

Sendo assim, são canceladas indiretamente, após a arrematação, todas as indisponibilidades relacionadas à relação jurídica pessoal do antigo proprietário, pois, caso contrário, “haverá uma substituição do arrematante em relações jurídicas pessoais do executado, o que não se admite, considerando a natureza e a finalidade da venda judicial de bens em procedimento executivo”.

Em relação às obrigações propter rem, que estão vinculadas ao bem in re, devem ser observadas pelo novo titular (arrematante), do mesmo modo que outros direitos reais vinculados ao bem, em favor de terceiros, que nao estejam relacionados à situação pessoal do antigo titular, devem manter sua eficácia, por conta de sua natureza real, como é o caso das servidões de passagem e administrativas, restrições ambientais, entre outras, até serem canceladas de maneira direta, pela via do juizo competente[13].”

 

Fonte: V.F. Kümpel, C.M. Ferreira, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v.5, tomo II, São Paulo, YK, 2020.

 

[1]     CSMSP, Apel. nº 1042254-27.2017.8.26.0114, rel. Artur Marques Da Silva Filho j. 28-05-2019.

[2]     Nesse sentido: Ag. Inst. nº 2006767-64.2016.8.26.0000, 8ª Câmara de Direito Público, rel. Ponte Neto, j. 25-5-2016. O STJ, no julgamento do REsp. n° 512.398, rel. Felix Fischer, entendeu que a indisponibilidade do aludido dispositivo legal implica na invalidade, em relação ao ente Fazendário, de qualquer ato de alienação do bem penhorado, praticado pelo devedor-executado após a efetivação da constrição judicial. Nesta seara, não impede a alienação forçada do bem em decorrência da segunda penhora, realizada nos autos de execução proposta por particular, desde que resguardados, dentro do montante auferido, os valores ao crédito fazendário relativo ao primeiro gravame imposto.

[3]     CSMSP, Apel. Cív. nº 0003288-37.2009.8.26.0358 e Apel. Cív. nº 0054473-65.2012.8.26.0114.; Cf. Apel. Cív. nº 1077741-71.2015.8.26.0100, rel. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 16-6-2016; CSMSP, Apel. Cív. nº 3000029-33.2013.8.26.0296, rel. Hamilton Elliot Akel, j. 5-5-2014; CSMSP Apel. Cív. nº 0004717-40.2010.8.26.0411, rel. José Renato Nalini, j. 27-8-2012.

[4]     E. Silva Trindade, Indisponibilidade de bens na execução fiscal (dívida ativa da União), in IRIB, s. d., disponível in https://irib.org.br/obras/indisponibilidade-de-bens-na-execucao-fiscal-divida-ativa-da-uniao, [29-08-2019].

[5]     CSMSP, Apel. Cív. nº 9000001-36.2015.8.26.0443, rel. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 18-10-2017.

[6]     Art. 16 do Provimento nº 39/2014 do CNJ.

[7]     REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida – Carta de Adjudicação – Ordem de indisponibilidade emanada de Juízo diverso daquele em que arrematado o imóvel – Provimento 39/14 do CNJ que, em seu artigo 16, permite o registro, ainda que faça alusão à menção, na carta de arrematação, de “prevalência da alienação judicial em relação à restrição oriunda de outro juízo” – Prescindibilidade de previsão expressa – Prevalência ínsita à própria expedição da carta de arrematação – Entendimento pacífico e reiterado deste Conselho Superior da Magistratura (CSMSP, Apel. Cìv. nº 1011373-65.2016.8.26.0320, rel. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 05-12-2017).

[8]     CSMSP, Apel. Cív. nº 9000001-36.2015.8.26.0443, rel. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 18-10-2016.

[9] CSMSP, Apel. nº 1042254-27.2017.8.26.0114, rel. Artur Marques Da Silva Filho j. 28-05-2019, j. 03-07-2019.

[10]   Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997.p. 155.

[11]   CGJSP, Parecer nº 74/2010-E, rel. Álvaro Luiz Valery Mirra, j. 30.03.2010.

[12]   CSM, Apel. nº 1001570-93.2016.8.26.0664, rel. Pereira Calças, j. 19.12.2017.

[13] CSMSP, apel. nº 1042254-27.2017.8.26.0114, rel. Artur Marques Da Silva Filho j. 28-05-2019, j, 03-07-2019. Ressalta-se que essa recente decisão do Conselho Superior da Magistratura modificou orientação anterior em que se admitia o ingresso do ato de alienação forçada (adjudicação ou arrematação), mas ainda assim o imóvel não poderia ser disposto de maneira voluntária sem um formal cancelamento da constrição.

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