“O rol dos relativamente incapazes encontra-se disposto no art. 4º do Código Civil, e, assim como o dos absolutamente incapazes, sofreu profundas alterações com a entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015. Pela redação original, eram considerados incapazes relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (i) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; (ii) os ébrios habituais; (iii) os viciados em tóxicos; (iv) os que, por deficiência mental, tivessem o discernimento reduzido; (v) os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo, e (vi) os pródigos. Pela nova redação[1] são considerados relativamente incapazes: (i) os ébrios habituais; (ii) os viciados em tóxicos; (iii) aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, e (iv) os pródigos.
Portanto, permaneceram como relativamente incapazes os pródigos e os ébrios. A Lei nº 13.146/2015 incluiu no rol de relativamente incapazes aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, hipótese essa antes pertencente ao rol dos absolutamente incapazes. É, por exemplo, o caso do indivíduo em coma.
O agente relativamente incapaz pode celebrar negócio jurídico, desde que esteja devidamente assistido por seu representante legal, curador ou apoiador. Nesta hipótese, a manifestação de vontade será suprida pela assistência. Os atos praticados sem a devida assistência, sendo o agente relativamente incapaz, são considerados anuláveis[2], e não nulos, como ocorre na hipótese de absolutamente incapaz. Isto porque se entende que tal vício repercute sobretudo na esfera particular dos agentes, e apenas secundariamente no âmbito de direito público[3]. Ou seja, tal ato pode trazer prejuízo para uma das partes, mas a priori não impacta no interesse social, como é o caso dos atos nulos.
Enquanto na incapacidade absoluta a vontade é manifestada pelo representante, na relativa é manifestada pelo próprio incapaz, cuja vontade prevalece sobre a do assistente. Este, não obstante, deve acompanhar o incapaz nessa manifestação de vontade. No caso de ausência do representante, nomeia-se um curador especial.
Embora se exija, em regra, a assistência para a prática de atos ou negócios pelo relativamente incapaz, existem aqueles que prescindem dessa assistência, ou seja, atos ou negócios que o incapaz pode praticar sozinho. São estes: (i) reconhecimento de filho[4]; (ii) feitura de testamento; (iii) aceitação de mandato, e (iv) testemunho, entre outros.
Não obstante a regra seja a da anulabilidade dos negócios celebrados por relativamente incapaz sem assistência, ressalte-se que, no que concerne aos negócios celebrados pelo menor com terceiros de boa-fé, atualmente não basta a mera alegação de sua menoridade para que se exima das obrigações contraídas.
A verdade é que, mesmo a in integrum restitutio ob aetatem romana – criada pelo pretor com base na aequitas naturalis[5] para desfazer negócios jurídicos que tivessem prejudicado um menor de vinte e cinco anos[6] – não era aplicada sem uma análise das circunstâncias concretas[7]. O próprio senatus consultum Macedonianum[8] – mecanismo jurídico que tornava ineficaz o mútuo contraído pelo filius familias[9] e inspirou dispositivos análogos no Código Civil[10] –, somente se aplicava para desencorajar empréstimos que gerassem um incentivo para o filius familias matar o paterfamilias a fim de pagar suas dívidas com a herança[11].
Dessa forma, nosso Código Civil disciplina duas situações em que, embora o negócio tenha sido realizado por incapaz sem assistência, não pode ser anulado: (i) menor que pratica o chamado dolo de ocultação[12]; (ii) a hipótese em que há proveito para o incapaz[13]”.
Prodigalidade
“O pródigo, de acordo com as Ordenações Filipinas, corresponde ao indivíduo que gasta e dilapida desmesuradamente a sua fazenda[14]. É quem esfacela seu patrimônio de modo incontrolável[15]. A raiz etimológica serve bem à conceituação: prodigalidade vem prodigus, substantivo derivado do verbo latino prodigere, que significa dissipar, malbaratar, gastar[16]”.
“Cabe distinguir a figura do pródigo e a do chamado superendividado. Chama-se consumidor superendividado o sujeito cujos ativos são inferiores ao valor das dívidas contraídas com seus credores. Tem, por conseguinte, um “passivo descoberto”. Existem razões legitimas e ilegítimas para o superendividamento. No primeiro caso, a perda de emprego, o divórcio, e situações similares são bons exemplos. No segundo caso, pensa-se na manutenção de um padrão de vida incompatível com os próprios ganhos.
Nessa linha de raciocínio, não há como sempre relacionar o pródigo com o superendividado, já que aquele tem um problema psíquico que o leva à condição de perdulário, ainda que autonomamente tratado pelo legislador, pelo menos até agora. É possível que o pródigo tenha, e mantenha, um ativo muito superior ao passivo, e ao mesmo tempo gaste desordenada e compulsivamente.
O que o pródigo e o superendividado têm em comum é que ambos, na medida em que gastam desordenadamente, acabam por gerar um problema para a circulação da riqueza, concernente à manutenção pessoal e familiar. Não é sem razão que o Estado deve tutelar ambos. Conferir-lhes proteção necessária é assegurar, também, a ordem econômica[17].
Cumpre salientar que a decretação de interdição por prodigalidade constitui medida excepcional, dentro da excepcionalidade que já é a própria interdição, considerando-se que muitos pedidos escondem interesses egoísticos, como a preservação de patrimônio que se espera receber por herança[18]. Daí a cautela que se espera do magistrado ao analisar casos desse tipo.
Outrossim, sendo o pródigo, por definição, um indivíduo que desmesuradamente gasta, a defesa que sobre ele recai, naturalmente, restringe-se à questão patrimonial, restando plena liberdade ao sujeito para que ordene sua vida em todos os outros âmbitos, sem qualquer ingerência.
Assim, trata-se de uma assistência diferenciada: o pródigo pode praticar todos os negócios jurídicos sozinho (presentado), com exceção dos atos de alienação, sejam eles no sentido de transmitir (venda, doação, troca, cessão), ou onerar bens (hipoteca, alienação fiduciária em garantia, usufruto).
Todavia, o pródigo pode casar-se[19], praticar atos de mera administração, e todos os outros atos da vida civil sem assistência[20], já que fora da esfera patrimonial o sujeito “não detém qualquer incapacidade de discernimento e incompreensão para a prática dos atos da vida civil”[21]”.
Causa Transitória ou Permanente
“É possível que, em decorrência de uma causa natural (patologia) ou, ainda, uma causa violenta ou acidental, o sujeito porte uma deficiência física ou sofra com perda de memória ou até mesmo de consciência, ficando obstado, ainda que temporariamente, de exprimir sua vontade para praticar atos da vida civil. De acordo com o disposto no Código Civil, o indivíduo nessa situação é considerado relativamente incapaz, e como tal depende de assistência para a prática de negócios jurídicos[22].
Como já dito, há aqui um problema ontológico, na medida em que, em algumas situações, a causa transitória impossibilita absolutamente o sujeito de manifestar qualquer vontade, como no caso do sujeito em estado de coma. Ainda assim, por mais absurdo que pareça, o sujeito é relativamente incapaz, por determinação expressa da nova redação do art. 4º do Código Civil, independentemente de já ter sido interditado ou não, já que a norma potestativa tida por benéfica retroage indistintamente, conforme observar-se-á melhor na abordagem do instituto da curatela”.
Maior de Dezesseis Anos e Menor de Dezoito Anos
“O jovem entre dezesseis e dezoito anos de idade, muito embora já tenha vasta capacidade de compreensão e autodeterminação, é considerado relativamente incapaz, pois ainda carece, em geral, de maturidade emocional bastante para governar com plena autonomia sua vida jurídica.
Dessa forma, o sistema impõe a necessidade de assistência para a prática de certos atos pelo sujeito inserto nesse intervalo de idade. Nota-se que, pela própria natureza de sua causa, na incapacidade etária relativa, o influxo protetivo do ordenamento é mais tênue, admitindo, inclusive, a prática de diversos atos sem qualquer assistência ou representação, como é o caso da feitura de testamento[23]”.
Toxicomania
“O Código Civil prevê como hipótese de incapacidade, por último, a toxicomania, ou seja, o vício em substâncias tóxicas, quando representar um obstáculo ao discernimento do agente, impedindo que este administre seus próprios negócios de forma deliberada ou, ainda, permitindo que exponha a risco a segurança de outras pessoas[24].
Entende-se, dessa forma, que o uso abusivo de entorpecentes pode repercutir nas funções intelectivas do usuário, com danos à sua cognoscibilidade, o que tornaria necessária, em casos graves, uma especial proteção do ordenamento[25], tendo em vista impedir que o toxicômano exerça atos da vida civil sem que tenha a necessária autonomia para tal.
A aludida proteção se dá por meio da curatela[26], de acordo com o Código Civil de 2002. Note-se que no Código Civil de 1916 o instituto da curatela não se aplicava aos toxicômanos, haja vista estes não constarem no rol de relativamente incapazes”.
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Fonte: KÜMPEL, Vitor Frederico et. al., Tratado Notarial e Registral vol. II, 1ª ed, São Paulo: YK Editora, 2017, p. 84/89.
[1] Cf. art. 114 da Lei nº 13.146/2015.
[2] Art. 171, inc. I, do CC/2002: “Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I – por incapacidade relativa do agente; (…)”.
[3] Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, vol. I, 40ª ed., São Paulo, Saraiva, 2005, p. 318.
[4] O incapaz absoluto, ressalve-se, depende de autorização judicial para praticar este ato, conforme se verá no capítulo atinente ao registro civil de nascimento.
[5] Ulp. 11 ad ed., D. 4, 4, 1 pr.: “Hoc edictum praetor naturalem aequitatem secutus proposuit, quo tutelam minorum suscepit…” (O pretor, seguindo a equidade natural, propôs este edito, pelo qual assumiu a tutela dos menores…).
[6] M. Marrone, Istituzioni di diritto romano, 3ª ed., Palermo, Palumbo, p. 261.
[7] Ulp. 11 ad ed., D. 4, 4, 1, 1: “…uti quaeque res erit…” [= “…conforme as exigências o caso…”].
[8] Ulp. 29 ad ed., D. 14, 6, 1, pr.
[9] M. Marrone, Istituzioni di diritto romano, 3a ed., Palermo, Palumbo, 2006, p. 241.
[10] Arts. 588 e 589 do CC/2002.
[11] F. H. Silva Ferreira, O Destino do Senatus Consultum Macedonianum no Brasil, in Revista de Informação Legislativa 199 (2013), pp. 80-83.
[12] Art. 180 do CC/2002: “O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior.”
[13] Art. 181 do CC/2002: “Ninguém pode reclamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não provar que reverteu em proveito dele a importância paga.”
[14] Ord. Fil. 4, 103, 6: “(…) pessoa, que como pródigo desordenadamente gasta e destrói sua fazenda (…)”.
[15] É interessante lembrar da parábola do filho pródigo, apresentado no Evangelho de Lucas, capítulo 15: 11-32. Certo homem tinha dois filhos, sendo que o mais moço desejava receber a herança em vida. Assim procedeu o pai e lhe deu a parte dos bens que lhe cabia. O filho ajuntou os bens, foi para uma terra distante e passou a viver uma vida dissoluta. Depois de consumir tudo e passar por extrema necessidade, e trabalhar guardando porcos, resolveu retornar à casa do pai já sem posse alguma. O pai, compadecido, recebeu o filho com todas as honras possíveis, como se o rapaz houvesse ressuscitado, preparando-lhe um grande banquete. Cf. Bíblia Sagrada – Edição Pastoral, São Paulo, Paulus, 2005, pp. 1113-1114 [=Luc. 15, 11-32 (Nov. Vulg.)].
[16] Cf. P. G. W. Glare (coord.), s.v. “prodigus, -a, -um” e “prodigo, -is, -igere, -egi”, in Oxford Latin Dictionary, London, Oxford University, 1982, p. 1472.
[17] Art. 170, inciso III, da CF/1988: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) III – função social da propriedade (…)”.
[18] M. P. Carvalho Filho, in C. Peluso (coord.), Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência, 8ª ed., São Paulo, Manole, 2014, p. 1949.
[19] No regime de comunhão universal, para a lavratura do pacto antenupcial, precisa estar assistido, na medida em que o regime da comunhão universal de bens é forma de aquisição e alienação patrimonial
[20] De acordo com o art. 1.782 do CC/2002: “A interdição do pródigo só o privará de, sem curador, emprestar, transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado, e praticar, em geral, os atos que não sejam de mera administração”.
[21] M. P. Carvalho Filho, in C. Peluso (coord.), Código Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência, 8ª ed., São Paulo, Manole, 2014, 1979.
[22] Art. 4º, inciso III, do CC/2002.
[23] Art. 1.860, parágrafo único, do CC/2002.
[24] K. Larenz, Allgemeiner Teildes deutschen Bürgerlichen Rechts, trad. Esp. De M. IZQUIERDO Y MACÍAS-PICAVEA, Derecho Civil – parte general, Madrid, EDERSA, 1978, p. 127.
[25] Note-se que a proteção aos viciados em tóxicos não se limita ao âmbito do Código Civil. Nesse sentido, Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito de Família, vol. V, 27ª ed. São Paulo, Saraiva, 2012, p. 707: “Curatela dos toxicômanos (CC, art. 1.767, III, in fine), que, já pela Lei nº 4.294/21, foram equiparados aos psicopatas, criando o Decreto-Lei nº 891/38, no art. 30, § 5º, duas espécies de interdição, conforme o grau de intoxicação: a limitada, que era similar à interdição dos relativamente incapazes, e a plena, similar à dos absolutamente incapazes. Caracterizando-se a incapacidade de maior ou menor extensão, dava ao toxicômano um curador, com poderes mais ou menos extensos. São considerados relativamente incapazes quanto à prática de certos atos, ou ao modo de os exercer (CC, art. 4º, II) e estão sujeitos a internação em estabelecimentos especiais de tratamento e de terapêutica ocupacional, conforme prescrevia o Decreto n. 24.559/34, combinado com o Decreto-lei nº 891/38, arts. 27 e s. (vide Lei nº 11.343/2006), e dispunha o já revogado Decreto n. 1.917/96, que revogou o Decreto n. 99.678/90. A Lei 5.726/71 (não mais vigente) traçou normas alusivas às medidas preventivas e repressivas ao tráfico e uso de tóxicos e sobre a assistência e recuperação de viciados. A Lei nº 10.409/2002 que revogou parte da Lei nº 6.368/76, disciplinou as medidas de prevenção e erradicação daquele tráfico e o tratamento dos dependentes de tóxico. Hodiernamente, a Lei nº 11.343/2006, que revogou as Leis n. 6.368/76 e 10.409/2002, prescreve as medidas para prevenção de uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, estabelecendo, ainda, normas para a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, sem olvidar da definição de crimes e da instituição do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD)”.
[26] Art. 1.767, inciso III, do CC/2002: “Estão sujeitos a curatela: (…) III – os ébrios habituais e os viciados em tóxico (…)”.
Ótima matéria