“Define-se o processo de habilitação como sendo o procedimento administrativo vinculado que tramita perante o Registrador Civil do domicílio de qualquer dos nubentes, com o escopo de verificar a capacidade matrimonial, eventual existência de impedimentos, anulabilidades ou causas suspensivas, que acarretem vícios de validade do negócio jurídico ou a incidência de efeitos jurídicos a serem suportados pelos contraentes.
Ademais, por meio desse procedimento de caráter administrativo, confere-se também publicidade à pretensão dos contraentes (mediante publicação dos editais de proclamas), possibilitando eventual arguição dos vícios pelos legalmente legitimados para o exercício desse direito[1].
Resumidamente, o processo de habilitação depende de requerimento dos pretendentes e de manifestação de vontade de contrair matrimônio, observância da idade núbil e outras regras e formalidades de ordem pública, impostas com o fito de resguardar o interesse do Estado de evitar a celebração de casamentos vedados por lei ou que não tenham o escopo de constituir família (casamento simulado). É nesse procedimento que o registrador analisa a validade do casamento pretendido, a regularidade da escolha do nome pelos nubentes e do regime de bens a ser adotado. (…)
O Código Civil de 2002 inova ao estatuir, no art. 1.528, o seguinte preceito: “É dever do oficial do registro esclarecer os nubentes a respeito dos fatos que podem ocasionar a invalidade do casamento, bem como sobre os diversos regimes de bens.” O referido dispositivo legal transcrito, como mencionado, inexistia no Código Civil de 1916 e estabeleceu uma nova obrigação ao oficial registrador ou a seus prepostos.
Por ocasião da qualificação registral deverá o oficial, em primeiro lugar, esclarecer tudo o que poderá acarretar invalidação do casamento. Muito embora o oficial só esteja obrigado a aferir as situações de impedimento e as causas suspensivas, é conveniente verificar quaisquer situações que possam gerar anulabilidade do matrimônio. Como já visto, não existem mais os impedimentos relativamente dirimentes. Hoje o Código trata de anulabilidades, todas elas de ordem privada, porém, o oficial, por profilaxia, deve orientar as partes sobre todas as situações do art. 1.550, do Código Civil.
Ainda mais espinhosa é a obrigação do oficial de esclarecer os possíveis regimes de bens. Independentemente das partes terem ou não apresentado pacto antenupcial, incumbe ao oficial registrador esclarecer minuciosamente os problemas referentes ao regime de bens. Tal missão não é fácil, já que os regimes são extremamente complexos. O ideal seria que o oficial tivesse uma cartilha para facilitar a compreensão das partes, normalmente pessoas simples.
Para exemplificar, é comum nas serventias dúvidas acerca da comunicabilidade no regime de comunhão parcial do fundo de garantia por tempo de serviço, mormente manifestada nas situações em que a pessoa trabalhe durante anos em uma empresa (oito anos, por exemplo), casa-se e, após o segundo ano de casamento, tenha por qualquer motivo o direito de levantar o fundo de garantia. Tal montante comunica-se com o outro cônjuge?
A questão não é simples, mas muito comum nas relações conjugais, que requer esclarecimentos por parte do registrador quando do processo de habilitação matrimonial, mormente a partir das orientações acerca do regime jurídico dos regimes de bens. Logo, a atuação do registrador vai além da simples indicação, no processo de habilitação, do regime de bens escolhido pelos contraentes, mas estende-se, sobretudo, na orientação acerca das regras e efeitos destes regimes, das questões complexas envolvidas, até mesmo como forma de resguardar o direito das partes.
Outra questão complexa diz respeito à explicação e orientação sobre o regime da participação final nos aquestos. A doutrina, de forma simplista, diz ser um regime de separação na vigência do casamento e de comunhão por ocasião da dissolução. Na verdade, trata-se de regime de separação em que há apuração de haveres por ocasião da dissolução e, por isso, o ideal é que o registrador civil deixe claro aos contraentes que existem dois grandes regimes de bens distintos, quais sejam, o regime de comunhão e o regime de separação. O primeiro pode ser universal ou parcial, inclusive, incidindo esta figura no regime da separação obrigatória, por força da Súmula 377 do STF.
Observa-se, suscintamente, que o regime de comunhão se caracteriza por fazer incidir, nos bens comuns, um condomínio germânico ou mancomunhão, de modo a pertencerem os bens integralmente a ambas as partes na vigência da sociedade conjugal.
O regime de separação, por sua vez, presente nas figuras de separação total e de participação final nos aquestos, caracteriza-se por não haver mancomunhão de bens. Pode haver, na pior das hipóteses, tão somente a instituição e condomínio romano, estabelecido por cotas ideais.
Esses esclarecimentos básicos são fundamentais para que os futuros contraentes possam se posicionar e verificar da necessidade de lavrar uma escritura de pacto antenupcial, que pode ser apresentada até no dia da celebração do casamento.
Logo, a entrevista se divide em duas partes. Na chamada parte formal, o oficial verificará se os contraentes estão documentalmente aptos à habilitar o casamento. Em sendo positiva esta primeira fase, passa-se para o segundo módulo da entrevista, de natureza substancial, em qual o oficial esclarece todas as questões que digam respeito à invalidade do casamento, não só as de nulidade (1.521, e 1.548, II, do Código Civil), bem como as de anulabilidade (art. 1.550, do Código Civil), advertindo-as, ainda, acerca de potenciais causas suspensivas do matrimônio.
Uma vez ultrapassada a análise das invalidações, passa o oficial a esclarecer, como já mencionado, a respeito dos regimes de bens. Caso os contraentes entendam não ser o melhor regime o da comunhão parcial, podem sobrestar o procedimento de habilitação ou deixar que este tramite regularmente, apresentando pacto antenupcial oportunamente, na medida em que não há problema na apresentação ou na modificação do pacto até o momento da celebração matrimonial.”
Fonte: “V.F. Kumpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, 1ª ed., v. 2, São Paulo, YK, 2017, pp. 404-405 e 717-720.”
[1] Conforme apontam Washington de Barros Monteiro – R. B. Tavares da Silva, in Curso de Direito Civil: Direito de Família, vol. II, 42ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, p. 108: “O casamento, devido à relevância de seus efeitos, é precedido de várias formalidades, que têm por objetivo tornar evidente a existência dos requisitos essenciais a sua celebração.”