O que é o Patrimônio de Afetação e a Cédula Imobiliária Rural?

“A Medida Provisória nº 897, de 1º de outubro de 2019, instituiu o Fundo de Aval Fraterno e, dentre outras providências, dispôs sobre o patrimônio de afetação de propriedades rurais e instituiu a Cédula Imobiliária Rural, provocando mudanças significativas em relação à cédula de crédito.

A citada medida provisória fomentou discussões assíduas sobre o instrumento jurídico que representa o crédito imobiliário, existindo a possibilidade de conferir o bem várias vezes em garantia de créditos diferentes. A problemática impacta o Sistema Imobiliário e deve ser observada com cautela para não prejudicar todo o sistema de garantia real no Brasil.

A Medida Provisória foi convertida na lei nº 13.986, em 7 de abril de 2020 e entrou em vigor na data da sua publicação”.

Teoria da afetação

“No que diz respeito ao patrimônio de afetação – ao qual a Lei nº 13.986/2020 dedicou todo o seu Capítulo II (arts. 7º ao 16) – ficou estabelecido que o proprietário de imóvel rural, pessoa natural ou jurídica, poderá submeter seu imóvel rural ou fração dele a este regime. Ou seja, ao proprietário fica reconhecido o direito de constituir a sua propriedade ou parte dela como patrimônio de afetação. Esse patrimônio de afetação, por sua vez, poderá ser vinculado à chamada Cédula Imobiliária Rural (CIR), disciplinada no Capítulo III da Lei nº 13.986/2020 (arts. 17 ao 29)”.

“Na terminologia técnica, a afetação diz respeito à possibilidade de segregação patrimonial ou qualificação de determinado acervo patrimonial por meio da imposição de encargos que vinculam os bens englobados a uma finalidade específica. De acordo com essa teoria, admite-se a existência de múltiplas massas patrimoniais sob titularidade de um mesmo sujeito, constituídas com o fim de proteger um bem socialmente relevante ou viabilizar a exploração determinada econômica[1]”.

“O patrimônio de afetação, em suma, pode ser definido como um regime especial da propriedade, sendo considerado uma garantia em favor dos credores, especialmente dos adquirentes[2]. Sob esse viés, pode-se afirmar que tem natureza jurídica de garantia real[3].

Sob outro viés, partindo da definição jurídica de patrimônio, tem-se que o patrimônio de afetação constitui uma universalidade de direitos e obrigações, vinculada ao cumprimento de uma finalidade específica, para a qual reveste-se de autonomia funcional. É, assim, uma massa de bens que constitui, no bojo de um patrimônio geral, uma universalidade de direito, dotada de autonomia funcional.[4]

De toda forma, importa ressaltar que o traço característico do patrimônio de afetação – e o que permite que cumpra sua finalidade social e econômica – é a incomunicabilidade. Por meio desta, os bens afetados ficam a salvo dos eventuais efeitos negativos de negócios estranhos ao objeto da afetação[5]”.

Regime de afetação da Lei no 13.986/2020

“Optando o proprietário do imóvel rural por adotar o regime de afetação da Lei nº 13.986/2020, o terreno, as acessões e as benfeitorias fixadas no imóvel exceto as lavouras, os bens móveis e os semoventes, constituirão patrimônio de afetação, destinado a prestar garantias por meio da emissão de Cédula de Produto Rural (CPR), de que trata a Lei nº 8.929, de 22 de agosto de 1994, ou em operações de crédito contratadas pelo proprietário junto a instituições financeiras.

Esse patrimônio de afetação, então, poderá ser vinculado a uma ou mais Cédulas Imobiliárias Rurais, hipótese na qual os bens e os direitos dele integrantes não se comunicarão com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos. Ressalte-se, ainda, que essa incomunicabilidade é limitada às garantias vinculadas à Cédula Imobiliária Rural ou a Cédula de Produto Rural e na medida das garantias expressas na CIR ou na CPR a ele vinculadas.

Percebe-se que conceito dado pela Lei nº 13.986/2020 ao patrimônio de afetação é o mesmo empregado pela Lei nº 4.591/1964, para o patrimônio de afetação da incorporação imobiliária. Com efeito, ao submeter a incorporação imobiliária ao regime da afetação, o acervo patrimonial que a compõe (o terreno, as acessões e os demais bens e direitos vinculados à incorporação) fica apartado do patrimônio geral do incorporador, assumindo como destinação exclusiva a construção do empreendimento e a entrega das unidades aos adquirentes.

A grande diferença em relação ao patrimônio de afetação da Lei nº 13.986/2020 é, naturalmente, a destinação, sendo o último destinado a prestar garantias em operações de crédito junto a instituições financeiras. Daí se afirmar que, enquanto no patrimônio de afetação da incorporação a finalidade é a proteção dos adquirentes das unidades autônoma, o patrimônio de afetação do imóvel rural serve como uma garantia real”.

Conceito

“A Lei nº 13.986/2020 conceitua a Cédula Imobiliária Rural (CIR) como um título de crédito nominativo, transferível e de livre negociação, que representa as seguintes situações:

i. promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito, de qualquer modalidade, e

ii. obrigação de entregar, em favor do credor, bem imóvel rural ou fração deste vinculado ao patrimônio rural de afetação, e que seja garantia da operação de crédito acima mencionada, nas hipóteses em que não houver o pagamento da operação de crédito”.

“A legitimidade para emissão da CIR tem como pressuposto a constituição do patrimônio rural de afetação (Art. 18 da Lei nº 13.896/2020). Conforme dispõe a lei, a CIR poderá ser garantida por parte ou por todo o patrimônio rural de afetação, observada a identificação do patrimônio rural em afetação, ou de sua parte, correspondente à garantia oferecida na CIR (Art. 18, §1º, da Lei nº 13.896/2020)”.

Limites objetivos

A Lei nº 13.986/2020 previu alguns limites objetivos à possibilidade de constituição de patrimônio de afetação sobre imóveis rurais. Assim, tal regime não poderá incidir sobre:

i. imóvel já gravado por ônus real (como hipoteca, alienação fiduciária etc.);

ii. imóvel em cuja matrícula tenha sido registrada ou averbada qualquer uma das informações arroladas no art. 54 da Lei nº 13.097/2015;

iii. a pequena propriedade rural;

iv. área de tamanho inferior ao módulo rural ou à fração mínima de parcelamento, o que for menor;

v. o bem de família de que trata a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). O inciso faz exceção no caso do §2º do art. 4º da Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990, que dispõe: “Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º, inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural“.”

Efeitos

“Embora a constituição do patrimônio de afetação não altere a titularidade do imóvel, impõe restrições à sua disponibilidade pelo proprietário. Primeiramente, não poderá constituir sobre ele nenhuma garantia real, com exceção da própria CIR ou CPR (Art. 10, §1º, da Lei nº 13.986/2020). Além disso, não poderá alienar o imóvel, seja por compra e venda, doação, parcelamento, ou qualquer outro ato translativo por iniciativa do proprietário (Art. 10, §2º, da Lei nº 13.986/2020).

O patrimônio de afetação vinculado à CIR ou CPR (apenas na medida dessa vinculação) torna-se impenhorável, não se sujeitando a constrição judicial (Art. 10, §3º, II, da Lei nº 13.986/2020). Ainda, tem-se que não poderá ser utilizado para realizar ou garantir o cumprimento de qualquer outra obrigação assumida pelo proprietário estranha àquela à qual vinculada a Cédula Imobiliária Rural (Art. 10, §3º, I, da Lei nº 13.986/2020) ou Cédula de Propriedade Rural.

A Lei nº 13.986/2020 prossegue afirmando que o patrimônio rural de afetação (ou a fração dele) vinculado a Cédula Imobiliária Rural ou CPR não será atingido pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário de imóvel rural (Art. 10, §4º, I, da Lei nº 13.986/2020), nem integrará a massa concursal (Art. 10, §4º, II, da Lei nº 13.986/2020). Por fim, ressalva que esses atributos do patrimônio de afetação não se aplicam às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural (Art. 10, §5º, da Lei nº 13.986/2020)

No que diz respeito ao proprietário, a constituição do patrimônio de afetação não apenas implica limitações, mas também gera deveres. Com efeito, o proprietário ficará obrigado a (Art. 14 da Lei nº 13.986/2020):

i. promover os atos necessários à administração e à preservação do patrimônio rural de afetação, inclusive por meio da adoção de medidas judiciais; e

ii. manter-se adimplente com as obrigações tributárias e os encargos fiscais, previdenciários e trabalhistas de sua responsabilidade, incluída a remuneração dos trabalhadores rurais”.

 

Fonte: KÜMPEL, Vitor Frederico et. al., Tratado Notarial e Registral vol. V, Tomo II, 1ª ed, São Paulo: YK Editora, 2020, p. 2741/2765.

[1] Chalhub, Melhim Namem, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 79.

[2] Rizzardo, Arnaldo, Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2017., p. 360.

[3] Araújo dos Santos, Flauzilino, Condomínio e Incorporação no Registro de Imóveis – Teoria e Prática, São Paulo, Mirante, 2012.., p. 274.

[4] Chalhub, Melhim Namem, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, pp. 83-84.

[5] Chalhub, Melhim Namem, A Promessa de Compra e Venda no Contexto da Incorporação Imobiliária e os Efeitos do Desfazimento do Contrato, in Revista de Direito Civil Contemporâneo, 7 (2016), pp. 147-183.

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