Qual é a natureza jurídica do Registro de Imóveis?

“Analisar a natureza jurídica de um instituto é procurar enquadrá-lo na categoria a que pertence, no ramo do Direito. Neste aspecto, pode-se dizer que a natureza jurídica do Registro de Imóveis é complexa e deve ser vista sob os seguintes critérios: (i) eficácia publicitária e constitutiva; (ii) natureza dos atos e; (iii) serviço prestado.

 

1.    Natureza difusa decorrente da publicidade e eficácia constitutiva

Sob a esfera constitucional, o direito de propriedade no Brasil é reconhecido e garantido no art. 5º, inc. XXII, com observância da limitação trazida pelo inc. XXIII do mesmo artigo, da Constituição Federal. Trata-se de um direito fundamental tão importante, que encontra previsão também no caput do art. 5º, da Constituição Federal: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. A mesma Carta Constitucional assegura, ainda, que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) II – propriedade privada; III – função social da propriedade privada” (art. 170, II e III).

A garantia do direito fundamental de propriedade permite a liberdade e o desenvolvimento econômico e social. A manutenção e a proteção de tal direito fundamental, mais especificamente da propriedade imobiliária, são efetivados por diversos aparatos legislativos, sendo os Ofícios de Registro de Imóveis um dos instrumentos mais eficazes para persecução desses objetivos.

Neste cenário, pode-se dizer que o Registro de Imóveis resguarda a propriedade imobiliária, na medida em que garante, via de regra, publicidade com eficácia erga omnes e autenticidade, atuando em caráter preventivo de litígios, e confere segurança jurídica aos atos registrais praticados (art. 1º, caput, da Lei nº 6.015/1973).

O direito material imobiliário brasileiro adota uma eficácia constitutiva do Registro Imobiliário para as transmissões de propriedade a título derivado, normalmente aquelas que envolvem a celebração de um negócio jurídico obrigacional, o qual é, no Brasil, causal para a transmissão desse direito real subjetivo. Assim dispõe o art. 1.227 do Código Civil que “os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código”. O registro, em cumprimento das regras materiais do direito das coisas, é dotado da característica de forma de aquisição derivada da propriedade imobiliária.

A lei, no entanto, excepciona casos de mutação imobiliária que podem ocorrer fora do Ofício de Registro de Imóveis, nos quais a aquisição da propriedade se dá ipso iure. É o caso, por exemplo, das formas originárias de aquisição da propriedade, como da usucapião, em suas diversas modalidades, da acessão (art. 1.248 e ss. do Código Civil), da aluvião (art. 1.250 do Código Civil) etc. Pode-se dizer que o Registro de Imóveis tem uma natureza jurídica complexa. Enquanto fator de publicidade, produz eficácia perante toda a coletividade, de forma que é possível lhe atribuir uma natureza difusa. Protege tanto o terceiro consulente (difuso) quanto o titular dominial.

 

2.    Serviço público delegado e natureza jurídica dos atos

A função registral tem sua diretriz no art. 236 da Constituição Federal, o qual contempla, expressamente, não apenas a natureza da atividade, mas também a forma de seu exercício[1]

Os serviços registrais são essencialmente públicos, muito embora seja o seu exercício delegado a particular[2]. Sobre o tema em detalhes, remete-se o leitor ao Tomo I do presente Tratado. A atividade é exercida em caráter privado, com contratação pessoal de empregados, regidos pelo regime da CLT[3], e toda gestão administrativa e financeira sob a esfera privada. O registrador deve promover todo o aparato necessário para garantir “a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos” (art. 1º da Lei nº 8.935/1994).

Assim, a natureza jurídica do exercício da atividade de registro é privada, por delegação[4] do Poder Público (art. 236, da Constituição Federal). No entanto, ainda que haja delegação do Poder Público, a natureza do serviço prestado permanece como pública, “de índole administrativa, essencial à segurança, eficácia, publicidade e autenticidade dos atos jurídicos praticados no cotidiano da vida em sociedade”[5]

Nesse sentido, em decorrência de sua própria natureza, as atividades registrais constituem função revestida de estaticidade, sujeitando-se, em consequência, a um regime estrito de direito público. A obrigatoriedade constitucional da execução dos serviços notariais e de registro a serem efetivados “em caráter privado, por delegação do Poder Público” (artigo 236 da Constituição Federal), não expurga ou elimina a natureza essencialmente estatal dessas atividades eminentemente administrativa[6]. São, assim, instituídas para o exercício de funções técnico-administrativas que se destinem assegurar “a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos” (art. 1º da Lei 8.935/1994).[7]

Embora sejam propriamente públicos os serviços de notas e registro, o exercício privado não se dá de modo facultativo, já que o constituinte conferiu o caráter imperativo da forma particular, por delegação[8]. Não há o que se falar em facultatividade quando a via privada foi a opção do constituinte. A delegação registraria não é feita em caráter transitório ou emergencial, mas a gestão indireta deste serviço é determinação constitucional.”

 

Fonte: V.F. Kümpel, C.M. Ferreira, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v.5, tomo I, São Paulo, YK, 2020.

 

 

[1] Pelo art. 32 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o art. 236 não se aplica aos serviços de notas e registro que já tenham sido oficializados pelo poder público, respeitando-se, neste caso, o direito de seus servidores, tal como ocorreu no Estado da Bahia (L.P. Aliende Ribeiro, Regulacão da Função Pública Notarial e de Registro, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 41).

[2] Diferente é o sistema no modelo alemão. Conforme estabelece o § 1 I GBO, os Registros Imobiliários são administrados pelos tribunais locais (Amtsgerichte), sendo competente o tribunal do local onde se encontra o bem imóvel (assim: H. P. Westermann – K. Gursky – D. Eickmann, Sachenrecht, 8ª ed., Heidelberg, 2011, p. 605). Entende-se que eles integram a denominada jurisdição voluntária (freiwillige Gerichtsbarkeit, cujo regramento encontra-se, sobretudo, na Lei de Registro Imobiliário (Grundbuchsordnung) e na Lei sobre o procedimento em questões de Familia e em assuntos relativos à jurisdição voluntária (Gesetz über das Verfahren in Familiensachen und in den Angelegenheiten der freiwilligen Gerichtsbarkeit – FamFG). Sobre a jurisdição voluntária: C. Schaeffer – J. Wiefels, Freiwillige Gerichtsbarkeit, 13ª ed., Leipzig, 1936.

[3] É possível a existência de prepostos sob o regime estatuário quando contratados antes da Lei 8.935/1994.

[4] Na lição de R. Dip, o alargamento do sentido do termo “delegação” pela Constituição Federal de 1988 não expurgou relevantes traços diferenciais da delegação e da descentralização de um serviço público, pois nesta há um êxtase de atribuições, com a subsequente gestão indireta das funções públicas, de modo que as funções são transferidas a ente diverso da administração pública titular do serviço. Já a delegação implica em mera desconcentração interna, ou transferência endógena. Mas atesta o autor que embora a “Constituição Federal vigente se recrute a categoria de uma ‘delegação extásica’, esse conceito é típico já de descentralização, como se extrai, p. ex. das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, Regis Fernandes de Oliveira, Diógenes Gasparini e Marçal Justen Filho” (R. Dip, Direito Administrativo Registral, São Paulo, Saraiva, 2010, p. 76.)

[5] Nesse sentido: M. Alves Miranda, A Importância da Atividade Notarial e de Registro no Processo de Desjudicialização das Relações Sociais, disponível in http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_ link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7134 [26.9.2018].

[6] D. Heuseler, G. Leite, J. Domingues Filho e M. C. Ricalde, Manual dos Notários e dos Reistradores – Comentários à lei nº 6.015/73 e Lei nº 8.935/94, Campo Grande, Contemplar, 2018, p. 607.

[7] STF, ADI nº 1.378 MC, rel. Celso de Mello, j. 30-11-1995.

[8] C. A. Molinaro, F. Pansieri, I. W. Sarlet, Comentários ao art. 236, in J. Gomes Canotilho – G. F. Mendes – I. W. Sarlet – L. L. Streck (coords.), Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo, Saraiva/ Almedina, 2013, p. 2161.

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