Luiz Antônio de Souza[1] e Vitor Kümpel[2]
Em 13/01/2021 entrou em vigor a Lei nº 14.119/21, que institui a POLÍTICA NACIONAL DE PAGAMENTO POR SERVIÇOS AMBIENTAIS, definindo conceitos, objetivos, diretrizes, ações e critérios de implantação da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA).
A Constituição Federal, no art. 225, caput, impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Quanto ao Poder Público vigora o princípio da intervenção estatal obrigatória, e para a coletividade o princípio da participação, do compartilhamento.
Entre os instrumentos adotados para a coletividade contribuir de forma participativa para a preservação ambiental, a sanção punitiva sempre foi empregada. Em matéria ambiental, além de eventuais sanções administrativas e penais, incide, em caso de dano ambiental, a responsabilização civil (CF, art. 225 § 3º), sendo aplicável o princípio do poluidor-pagador (art. 4º inciso VII da Lei 6.938/81).
Todavia, o mero sancionamento punitivo não conseguiu frear o avanço da degradação ambiental. Adotou-se, então, um caminho virtuoso – a educação ambiental. A Carta Constitucional, no art. 225, § 1º inciso VI, impõe ao Poder Público, como política pública obrigatória, “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”. Em razão disso foi editada a Lei da Política Nacional da Educação Ambiental – Lei 9.795/99 – cujo art. 3º caput e inciso I dispõem que, como parte do processo educativo mais amplo, todos têm direito à educação ambiental, incumbindo ao Poder Público, nos termos dos arts. 205 e 225 da Constituição Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental, promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e o engajamento da sociedade na conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente.
Todavia, a transformação da sociedade para um pensar e agir ecológicos, não é tão simples e rápido. O “pensamento e postura ecológicos” serão progressivamente atingidos com políticas públicas adequadas e eficientes, somando-se a conscientização e o engajamento social, posto ser necessária a participação ativa da sociedade na construção de um viver sustentável. Na edificação do Estado Socioambiental de Direito, é imprescindível a “democracia ambiental participativa” e seu marco axiológico fincado no “princípio constitucional da solidariedade”[3].
Além desses dois, um terceiro instrumento veio juntar-se para alavancar a participação da sociedade – a sanção premial (o direito premial).
A punição, diz Terence Dorneles Trennepohl, “através da aplicação da sanção negativa, representando castigo e represália, mostra-se, no mundo contemporâneo, em flagrante decadência, seja pela falência das instituições punitivas, seja pela ineficácia da tão pretendida ressocialização, pelas vias da prisão ou das penas restritivas de direito”[4]. Assim, com inspiração nos ares de liberdade e no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, busca-se, cada vez mais, diminuir a intervenção estatal, fazendo prevalecer medidas de prevenção, isto porque, “quanto mais de previne, tanto menos se reprime”[5].
É nesse contexto que o direito premial, o incentivo e o prêmio para regular e incentivar condutas, vem sendo cada vez mais aplicado. Há, “no momento legislativo atual, uma forte tendência de moralização, que não se apresenta sob a forma de leis punitivas, mas frequenta o cenário da legislação sob as formas de recompensa às condutas racionais e consoantes à ordem e à moral, ao justo e ao certo”[6].
Maurício Benevides Filho[7] ilustra que a obra de Jeremy Bentham (Teoria das Penas e das Recompensas), publicada no século XIX, é considerada marco do direito premial, pois ali encontramos a primeira sistematização da técnica motivacional positiva de indução a comportamentos humanos. Depois, Norberto Bobbio editou trabalho em 1977, denominado Dalla Struttura alla Funzione, com o que passou a ser considerado sucessor de Bentham quanto ao direito premial[8].
Assim, a recompensa premial é uma constante no Estado intervencionista, isto porque a coação e punição não mais representam o único meio de orientação social. Inclusive, Norberto Bobbio distinguia ordenamento repressivo e ordenamento promocional. Para o primeiro, “existiam três formas de impedir uma ação: a) torná-la impossível; b) torná-la difícil; e c) torná-la desvantajosa”. Já no segundo caso, de um ordenamento promocional, “as formas de impedir a ação eram: a) torná-la necessária; b) torná-la fácil: e c) torná-la vantajosa”[9]. E é neste último que se encaixa a instrumentação econômico-financeira positiva ambiental.
Como assinala Gabriel Wedy, “De fato, o referido princípio invoca a regulação por indução e estímulo a práticas sustentáveis, normalmente mais eficientes do que as tradicionais medidas repressivas e punitivas, de “comando-e-controle”, que ensejam a atuação estatal para depois de cometida a infração ambiental”. E acrescenta: “O princípio do protetor-recebedor, importante destacar, envolve o mecanismo que se convencionou denominar de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), o qual “consiste no aporte de incentivos e recursos, de origem pública e/ou privada, para aqueles que garantem a produção e a oferta do serviço e/ou produto obtido direta ou indiretamente da natureza””[10].
Portanto, no pagamento por serviços ambientais (PSA), um agente financiador, público ou privado, remunera quem preserva áreas naturais próprias em benefício da sociedade.
Eduardo Coral Viegas traz um exemplo internacional, que é o abastecimento de água na cidade de Nova York[11].
No Brasil, entre outras situações previstas, a Lei 12.651/2012 – Código Florestal -, tratou da temática no artigo 41, elencando como linha de ação, dentre outras, o pagamento ou incentivo a serviços ambientais como retribuição, monetária ou não, às atividades de conservação e melhoria dos ecossistemas e que gerem serviços ambientais, tais como a conservação das águas e dos serviços hídricos[12].
Há que se lembrar, ainda, do princípio do usuário-pagador, expresso no art. 4º inciso VII da Lei 6.938/81, que dispõe que todo aquele que utiliza recursos ambientais com fins econômicos deve contribuir em razão da utilização de um bem difuso, de uso comum do povo. Ou seja, o princípio do usuário-pagador não ostenta caráter punitivo, pois, independentemente da legalidade do comportamento do usuário, ele pode ser cobrado pelo mero uso do bem ambiental.
Assim, pode-se dizer que “PSA é um instrumento baseado no mercado para financiamento da conservação que considera os princípios do usuário-pagador e provedor-recebedor, pelos quais aqueles que se beneficiam dos serviços ambientais (como os usuários de água limpa) devem pagar por eles, e aqueles que contribuem para a geração desses serviços (como os usuários de terra a montante) devem ser compensados por proporcioná-los. Assim, essa ferramenta busca conservar e promover o manejo adequado por meio de atividades de proteção e de uso sustentável.
Para o PSA funcionar deve haver provedores, pessoas engajadas capazes de preservar e manter o serviço ambiental. E também os compradores, pessoas interessadas que irão se beneficiar da proteção de tal serviço, como ONGs, empresas privadas, poder público, pessoas físicas, entre outros. Vale ressaltar que essa é uma prática voluntária, e também pode ser adotada por empresas que visem melhorar sua imagem ou mesmo por pessoas que queiram mitigar os impactos de suas ações cotidianas”[13].
No que toca aos imóveis privados, regidos, portanto, pelo Código Civil, notadamente pelos artigos 1.228 e seguintes, foram escolhidos para provimento de serviços ambientais, três categorias: a) os situados em zonas rurais inscritos no Cadastro Ambiental Rural (CAR), sendo dispensados da inscrição as terras indígenas, territórios quilombolas e outros ocupados por populações tradicionais; b) os situados em zona urbana que estejam em consonância com o Plano Diretor do município (devidamente edificados e adequadamente utilizados); c) as reservas particulares do patrimônio natural (RPPNS) e as áreas das zonas de amortecimento e dos corredores ecológicos cobertas por vegetação nativa.
Nestas três categorias de imóveis privados, eleitas para pagamento por serviços ambientais, mediante, inclusive, a utilização de recursos públicos, dando-se preferência para áreas localizadas em bacias hidrográficas consideradas essenciais para o abastecimento público de água, abrangendo ainda em áreas prioritárias para conservação da diversidade biológica em processo de desertificação ou avançada fragmentação.
Uma das questões deveras interessantes, ainda em âmbito privado, é o contrato de pagamento por serviços ambientais. Uma das discussões a ser travada pela doutrina e pela práxis será a incidência ou não do art. 108 do Código Civil que impõe escritura pública para todos os negócios que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a 30 (trinta) vezes o maior salário mínimo vigente no país. Tal questão não foi pensada no texto legal tendo sido cogentes três naturezas de cláusulas: 1) direitos e obrigações do provedor; 2) direitos e obrigações do pagador; 3) as condições de acesso, pelo poder público, a área objeto do contrato, podendo ser instituída nos imóveis rurais servidão ambiental.
Como última observação relevante, está o acréscimo ao rol taxativo dos atos de registro do art. 167 da Lei dos Registros Públicos. Passa a estabelecer o item 45, como um ato de registro “do contrato de pagamento por serviços ambientais, quando este estipular obrigações de natureza propter rem”.
Como é sabido, os atos de registro, ao contrário dos atos de averbação, são aqueles essenciais e que conferem posição jurídico-real, estando enumerados de forma fechada no inciso I do art. 167 da LRP, porém não de forma exauriente. [14]
O contrato de pagamento de serviços ambientais, ao estipular obrigações de natureza propter rem, estabelece um ônus real sobre o imóvel equiparável a servidões prediais, merecendo um estudo a parte que refoge a alçada da presente pesquisa.
[1] Luiz Antônio de Souza, Procurador de Justiça (28º Procurador de Justiça da Procuradoria de Interesses Difusos e Coletivos); Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Professor Assistente-Doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Professor do Curso Damásio e do Instituto Damásio de Direito; Professor dos Cursos de Pós-Graduação da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, do COGEAE – Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC/SP, da ESA – Escola Superior de Advocacia. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Urbanístico do Instituto Damásio de Direito chancelado pela Faculdade de Direito IBMEC-SP.
[2] Vitor Frederico Kümpel, possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1991), doutorado em Direito pela Universidade de São Paulo (2003) e é Livre-Docente em Direito Notarial e Registral pela Universidade de São Paulo (2020). Atualmente é juiz de direito titular II – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, professor da Faculdade de Direito Damásio de Jesus.
[3] SARLET, Ingo, e FENSTERSEIFER, Tiago, Direito Constitucional Ambiental, RT, 3ª edição, 2013, p. 56.
[4] Terence Dorneles Trennepohl, Incentivos Fiscais no Direito Ambiental, São Paulo, Editora Saraiva, 2011, 2ª edição, p. 45.
[5] idem, p. 46
[6] Idem, p. 46
[7] Maurício Benevides Filho, A Sanção Premial no Direito, Brasília, Brasília Jurídica, 1999, p. 56
[8] Terence Dorneles Trennepohl, obra citada, p. 47 destaca que “O autor italiano, em passagens de sua obra, ressalta a importância dos incentivos, subsídios e prêmios, onde o Estado não mais age como mero partícipe das relações sociais, como se passava no L´État Gendarme, mas sim, dada a intensa participação atual, em vista do Welfare State, intervencionista, portanto, urge sua intensa presença, em quase todos os setores da sociedade”. Ainda complementa que o autor italiano “ … destaca as sanções positivas em retributivas e indenizatórias. As primeiras sintetizam as condutas pautadas no que é desejado socialmente; as segundas são compensações pelo dispêndio de esforços na busca de vantagens para sua comunidade”. E Maurício Benevides Filho, obra citada, p. 82, ressalta que Norberto Bobbio ainda previa “sanções positivas preventivas e sucessivas”, sendo as primeiras “anteriores à ação, por exemplo, isenções”, enquanto “as segundas, posteriores, recompensas, meritórias”.
[9] Terence Dorneles Trennepohl, obra citada, p. 132
[10] Wedy, Gabriel, “Os princípios do poluidor-pagador, do protetor-recebedor e do usuário-pagador”, CONJUR, 12.10.2019 – o articulista, como exemplo, refere que em recente estudo, a World Resource Institute (WRI) concluiu que só no Brasil as florestas em terras indígenas podem “render” em serviços prestados até um trilhão de dólares nos próximos 20 anos (cerca de 3,2 trilhões de reais), o que equivale a quase metade do Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2015. São os chamados “serviços ecossistêmicos”, que não aparecem nas contas públicas, mas geram resultados positivos relativos à produção e conservação da água, retenção de nutrientes no solo, regulação da temperatura e chuvas, polinização, recreação e turismo (DING, Helen; VEIT, Peter. Protecting Indigenous Land Rights Makes Good Economic Sense.World Resource Institute (WRI). Disponível em: <http://www.wri.org/blog/2016/10/protecting-indigenous-land-rights-makes-good-economic-sense>. Acesso em: 10 out. 2019).
[11] VIEGAS, Eduardo Coral, Pagamento por serviços ambientais é importante instrumento de conservação, CONJUR, 17.09.2016: “No plano internacional, um modelo bastante referido na literatura é o caso de Nova York. A bacia hidrográfica dessa grande cidade americana atende por dia a demanda de aproximadamente 9 milhões de pessoas. Por sua vez, a prefeitura nova-iorquina investe há longos anos em propriedades rurais situadas a até 200km de distância de sua sede. Os resultados são surpreendentes tanto em termos do aumento de volume de água quanto de sua qualidade.
Atualmente, os moradores e visitantes de Nova York podem tomar água da torneira, sendo que antes ela passa apenas por processo de filtragem e adição de cloro e flúor. Não há outras formas de tratamento. Assim, um investimento na área rural, inclusive em outros municípios, reflete diretamente no ambiente urbano, que é densamente povoado e grande demandante de água de qualidade”. .
[12] Art. 41. É o Poder Executivo federal autorizado a instituir, sem prejuízo do cumprimento da legislação ambiental, programa de apoio e incentivo à conservação do meio ambiente, bem como para adoção de tecnologias e boas práticas que conciliem a produtividade agropecuária e florestal, com redução dos impactos ambientais, como forma de promoção do desenvolvimento ecologicamente sustentável, observados sempre os critérios de progressividade, abrangendo as seguintes categorias e linhas de ação:
I – pagamento ou incentivo a serviços ambientais como retribuição, monetária ou não, às atividades de conservação e melhoria dos ecossistemas e que gerem serviços ambientais, tais como, isolada ou cumulativamente: a) o sequestro, a conservação, a manutenção e o aumento do estoque e a diminuição do fluxo de carbono; b) a conservação da beleza cênica natural; c) a conservação da biodiversidade; d) a conservação das águas e dos serviços hídricos; e) a regulação do clima; f) a valorização cultural e do conhecimento tradicional ecossistêmico; g) a conservação e o melhoramento do solo; h) a manutenção de Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito;
(…)
- 5º O programa relativo a serviços ambientais previsto no inciso I do caput deste artigo deverá integrar os sistemas em âmbito nacional e estadual, objetivando a criação de um mercado de serviços ambientais.
(…)
- 7º O pagamento ou incentivo a serviços ambientais a que se refere o inciso I deste artigo serão prioritariamente destinados aos agricultores familiares como definidos no inciso V do art. 3º desta Lei.
[13] Nesse sentido “O que é Pagamento por Serviços Ambientais e como funciona?” – ecycle – – https://www.ecycle.com.br/4799-pagamento-por-servicosambientais.html#:~:text=Pagamento%20por%20Servi%C3%A7os%20Ambientais%20%2D%20PSA,eles%2C%20e%20aqueles%20que%20contribuem – Manoela Imamura Hernandez – acesso em 15.01.2021
[14] V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Registro de Imóveis, v. 5, t. 1, página, 533-538, São Paulo, YK Editora, 2019.