Vitor Frederico Kümpel e Fernando Keutenedjian Mady
Neste artigo, serão analisados os impactos da Emenda Constitucional 131, de 3 de outubro de 2023, que alterou questões relacionadas ao direito de nacionalidade, especialmente no contexto das atividades realizadas nos tabelionatos e registros públicos.
O Estado da Pessoa Natural é uma representação de sua posição jurídica em diferentes contextos: político, familiar e individual. Ele reflete a soma de suas características na sociedade e é essencial para sua identificação no sistema jurídico, juntamente com seu nome e domicílio. A definição do estado da pessoa natural é crucial para a realização de atos civis, e é por isso que toda entrada nos registros públicos começa com essa informação1.
No Registro Civil das Pessoas Naturais, o estado civil faz parte da descrição do titular do direito registrado, como visto nos procedimentos de habilitação para o casamento e nos registros matrimoniais, além de ser relevante na identificação das testemunhas. No que diz respeito aos registros de nascimento, embora incluam informações sobre a nacionalidade dos pais do registrado, não é apropriado registrar o estado civil, pois é proibido inserir no registro dados que indiquem qualquer diferenciação em relação à natureza da filiação.
O estado político aborda as questões relacionadas à política e à nacionalidade de uma pessoa, especialmente aquelas relacionadas à sua condição como nacional, estrangeiro, apátrida ou com múltiplas nacionalidades.
O registro civil de nascimento atua como uma prova direta e imediata da nacionalidade de uma pessoa, o que é fundamental para o exercício dos direitos políticos. A nacionalidade, de acordo com a Constituição de 1988, é considerada um direito fundamental e pode ser definida como o vínculo legal e político interno que faz com que uma pessoa seja parte integrante da população de um Estado. Essa ligação, portanto, conecta o indivíduo a um Estado específico, tornando-o sujeito às leis desse Estado. Tal direito é reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, art. XV, que também veda o estado de apatridia (vínculo local ou ascendência)2.
Segundo José Afonso da Silva, nacionalidade e cidadania são conceitos distintos, sendo o primeiro atribuído aos brasileiros natos ou naturalizados, enquanto a cidadania qualifica o indivíduo para desfrutar de direitos políticos e participar ativamente na vida do Estado3.
A nacionalidade originária é aquela considerada como primária e concedida desde o nascimento, sendo atribuída de forma involuntária. Pode resultar tanto do local de nascimento (princípio do jus soli)4 quanto da nacionalidade dos pais (princípio do jus sanguinis)5.
Por outro lado, a nacionalidade derivada é adquirida de forma voluntária, geralmente através do processo de naturalização. Geralmente, implica em uma mudança da nacionalidade anterior, pois requer uma expressão de vontade por parte do indivíduo6.
A importância da nacionalidade como componente do estado civil de uma pessoa foi mais relevante no passado do que é atualmente, especialmente em um mundo globalizado com um constante intercâmbio de pessoas. Nesse contexto, D. A. DALLARI adverte que a análise natural dos elementos do Estado sugere que o plurinacionalismo é a regra, ou seja, em cada povo há indivíduos de inúmeras nacionalidades7.
Desde os tempos do sistema jurídico romano, essa questão tem sido uma preocupação, com o status civitatis representando a dependência de um indivíduo em relação a uma comunidade juridicamente organizada. Inicialmente, esse vínculo estava entre os homens livres e a cidade de Roma. Apesar da posterior expansão, os romanos não abandonaram a concepção de cidade-Estado, criando uma categoria para representar, ao lado dos cives (cidadãos), os súditos livres (peregrini = peregrinos) que não o eram8.
O Brasil, como um país formado por imigrantes e com uma rica diversidade cultural, reflete essa complexidade. A nacionalidade é um elemento crucial na qualificação por notários e registradores, além de ser um requisito para vários atos praticados nos Registros Públicos, como na aquisição de imóveis rurais por estrangeiros (Lei nº 5.709/1971), participação em empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens (art. 222 da CF), bem como na opção de nacionalidade e sua eventual perda.
A alteração proposta pela Emenda Constitucional nº 131/2023 no artigo 12, § 4º, da Constituição Federal, referente à perda da nacionalidade brasileira, destaca-se pela sua significativa relevância. Agora, o cidadão somente perderá sua nacionalidade brasileira mediante um pedido expresso por escrito, e ainda assim, terá a possibilidade de readquiri-la posteriormente.
Anteriormente, a nacionalidade derivada era declarada perdida mediante o cancelamento da naturalização por sentença judicial, em casos de atividade nociva ao interesse nacional, ainda baseada na antiga lei de segurança nacional (Lei nº 7.170/1983) declarada inconstitucional pelo STF. Houve considerável debate doutrinário e jurisprudencial sobre o significado dessa atividade “nociva”9. A Constituição Federal de 1988 não especificava o que seria considerado “atividade nociva ao interesse nacional” para justificar a perda da nacionalidade por punição. A Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), ao tratar desse assunto, não esclareceu esse conceito vago, apenas mencionando o risco de tornar alguém apátrida. Em um caso incomum de definição judicial do termo “atividade nociva”, o TRF da 3ª Região confirmou a perda da nacionalidade de uma brasileira naturalizada que cometeu crimes de falsificação de documentos e introdução clandestina de estrangeiros, conforme previsto no Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815/80)10.
Com a nova redação introduzida pela emenda, o cancelamento da naturalização passa a ser uma das causas de perda da nacionalidade em duas situações: em primeiro lugar, na ocorrência de fraude no procedimento de naturalização, o que resulta em sua nulidade e eventual trasladação no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais;11 em segundo lugar, de forma mais ampla e superveniente à aquisição da nacionalidade brasileira, nos casos de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Esse conceito amplo de “atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” pode ser aplicado conforme previsto no Código Penal, especialmente nos crimes contra o Estado Democrático de Direito, incluídos no Título XII da Parte Especial do Código pela lei 14.197/2021, arts. 359-I a 359-T (dos crimes contra a soberania nacional, dos crimes contra a instituição democrática, dos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral, dos crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais).
A nacionalidade originária e derivada brasileira podem ser perdidas mediante renúncia expressa do titular, desde que isso não resulte em estado de apatridia. Portanto, os brasileiros natos que adquirirem outra nacionalidade estrangeira não estão mais sujeitos à perda de sua nacionalidade brasileira, desde que a nova nacionalidade seja devidamente averbada no assento de nascimento, conforme previsto no art. 102, 5º, da LRP, por meio de comunicado emitido pelo Ministério da Justiça, cuja competência foi atribuída pelo decreto 3.453/2020. Ressalte-se que o objetivo do sistema é evitar a situação dos heimatlos (indivíduo que se encontra desprovido de nacionalidade).
Nesse sentido, é necessário que o renunciante possua a nacionalidade de outro país como requisito para o ato, a fim de evitar o estado de apatridia. Vale ressaltar que a reaquisição futura da nacionalidade brasileira também é permitida, conforme estabelecido pela inclusão do § 5º ao art. 12 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional 131/2023, com a devida averbação no assento de nascimento.
Conforme analisado, os efeitos decorrentes da nova ou dupla nacionalidade refletem no Registro Civil das Pessoas Naturais, mediante averbação no assento de nascimento, conforme previsto no art. 102, 5º, da LRP, por meio de comunicado emitido pelo Ministério da Justiça. Isso significa que os registradores terão a responsabilidade de analisar uma quantidade maior de atos que impactam a relação legal entre o cidadão e o Estado Brasileiro, o que pode resultar na perda de mandatos eletivos, cargos, empregos ou funções públicas, já que a nacionalidade brasileira é um requisito essencial para o exercício dessas atribuições.
Ainda, esses efeitos podem incluir a submissão ou não aos requisitos estabelecidos pela lei 5.709/1971, regulamentada pelo decreto 74.965/1974, para aquisição de imóveis rurais no Brasil, tais como a exigência de escritura pública e os limites de área em determinado município para estrangeiros ou nacionais do mesmo país. Ainda há incerteza quanto à questão de se a renúncia da nacionalidade brasileira resulta ou não na perda da propriedade para o ex-nacional. De um lado, a renúncia é um negócio abdicativo, que altera o estado da pessoa, porém, o sistema brasileiro tem com regra a irretroatividade dos efeitos de modificações de estado político, o qual pode ser considerado um direito adquirido, no caso, a propriedade.
No Registro Civil de Pessoas Jurídicas, a questão da nacionalidade também se mostra relevante, especialmente no que diz respeito à obrigatoriedade de matrícula no RCPJ para empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora, de sons e imagens, conforme previsto no artigo 222 da Constituição, que limita a participação de estrangeiros nessas empresas a até 25% do capital total e votante.
Outros efeitos decorrentes da renúncia e reaquisição da nacionalidade brasileira podem ser objeto de estudo adicional. No entanto, é evidente que a nacionalidade desempenha um papel crucial nos tabelionatos e registros públicos.
A mudança introduzida pela Emenda Constitucional 131/2023, no artigo 12 da Constituição Federal de 199812, é vista como positiva, pois se adapta à nova realidade de cidadãos plurinacionais em diversos países do mundo, bem como atende às necessidades das pessoas e à sua plurinacionalidade. A distinção entre nacionalidade e cidadania, a necessidade de evitar a apatridia e a possibilidade de renúncia seguida de reaquisição da nacionalidade são aspectos fundamentais abordados nesse contexto.
Essas mudanças impactam diretamente os registros públicos e tabelionatos, exigindo uma análise mais criteriosa dos atos que envolvem a nacionalidade dos cidadãos. A voluntariedade na perda da nacionalidade brasileira e os efeitos decorrentes desse processo ganham destaque, ressaltando a importância de garantir a segurança jurídica e a proteção dos direitos dos indivíduos em um cenário cada vez mais plural e diversificado.
Diante desse cenário de transformações e adaptações legais, é essencial que os profissionais do direito estejam atualizados e preparados para lidar com as questões relacionadas à nacionalidade, garantindo o pleno exercício dos direitos e deveres dos cidadãos em um contexto nacional e internacional em constante evolução.
A Emenda Constitucional trouxe alterações significativas tanto na perda da nacionalidade por punição, alterando profundamente seus fundamentos, quanto na perda por aquisição, que foi eliminada. Isso resultou em uma restrição significativa à possibilidade de perda da nacionalidade brasileira.
Portanto, pode ser considerada uma Emenda Constitucional que tem como objetivo a preservação da nacionalidade, na medida em que eliminou a figura tradicionalmente conhecida como “polipatria proibida” e também restringiu o cancelamento da naturalização de um indivíduo por meio de sentença judicial, ressaltando a relevância da nacionalidade como aspecto do estado da pessoa natural, especialmente em um mundo globalizado caracterizado por um constante intercâmbio de pessoas.
1 Cf. V. F. KÜMPEL – C. M. FERRARI, Tratado de direito notarial e registral, 2ª ed., São Paulo, YK, 2022, p. 168.
2 Cf. F. K. COMPARATO (in A afirmação histórica dos direito humanos, 7ª ed. rev. e atual., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 245-246.
3 Cf. Curso de direito constitucional positivo, 26ª ed. rev. e atual, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 319.
4 CF, art. 12, I, “a”; LRP, art. 50, caput
5 CF, art. 12, I, “c”; LRP, art. 32
6 Lei 13.445/2017, art. 64 e seguintes
7 Cf. DALMO DE ABREU DALLARI, Elementos de teoria geral do Estado, 25ª ed., São Paulo, Saraiva, 2005, p. 135
8 Cf. J.C. MOREIRA ALVES, Direito Romano, 18ª ed, Rio de Janeiro, Forense, 2018, p 140-141.
9 Como bem ressaltou o ex-MIN. MARCO AURÉLIO DE MELLO, obtiter dictum, no Recurso Ordinário em Mandado De Segurança 27.840, do Distrito Federal, julgado em 07/02/2013, o Constituinte deixou aberta a redação para os casos de perda, porque “n” são as hipóteses que justificava a perda da nacionalidade. Cf. o ex-Min. Marco Aurélio de Mello, a que se transcreve “Penso que a cláusula do inciso I do § 4º do artigo 12 da Constituição Federal é abrangente, no que revela que o cancelamento – é a situação jurídica – da naturalização deve decorrer de sentença judicial. É certo que na parte final do preceito se tem “em virtude”, apontando-se causa, mas, a meu ver, essa referência: “em virtude de atividade nociva ao interesse nacional”, é simplesmente exemplificativa, porque “n” situações podem surgir a desaguarem na cassação, no cancelamento da naturalização”.
10 AC 00163489720064036100, Rel. Des. Fed. Marli Ferreira, e-DJF3 26/09/2013.
11 Cf. Enunciado 1 da I Jornada de Direito Notarial e Registral: É possível trasladar os registros civis estrangeiros de nascimento, casamento e óbito de brasileiros naturalizados no Livro E do Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais competente mediante a apresentação do certificado de naturalização e dos demais documentos exigidos na Resolução CNJ n. 155/2012. Somado a este, o enunciado 8 da mesma Jornada, cujo teor, in verbis: “Para inscrição dos demais atos relativos ao estado civil, é possível o registro da naturalização no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, após sua concessão pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública”.
12 § 4º – Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que:
I – tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de fraude relacionada ao processo de naturalização ou de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
II – fizer pedido expresso de perda da nacionalidade brasileira perante autoridade brasileira competente, ressalvadas situações que acarretem apatridia.
§ 5º A renúncia da nacionalidade, nos termos do inciso II do § 4º deste artigo, não impede o interessado de readquirir sua nacionalidade brasileira originária, nos termos da lei.
*texto retirado do Portal Migalhas.