Vitor Frederico Kümpel e Natália Sóller
A lei 14.711/23, Lei de Garantias, promoveu diversas alterações no instituto da alienação fiduciária em garantia, modificando diretamente a lei 9.514/97, o Código Civil e outras leis que regulamentam a matéria. O objetivo desta coluna é analisar como tais alterações reforçam a tese de que a AFG tem natureza jurídica de patrimônio de afetação.
Não obstante a nova redação dada ao art. 22 da lei 9.514/97 tenha mantido a definição da AFG como uma forma de propriedade resolúvel1, entende-se que sua natureza mais adequada é a de patrimônio de afetação, não existindo de fato uma resolubilidade com a constituição dessa garantia2.
Em rápida análise, destaca-se que a propriedade resolúvel é uma cláusula aquela que está sujeita à extinção por uma condição resolutiva consignada no próprio título de sua constituição ou em determinação legal; nesse cenário, o titular do bem perde sua propriedade plena em favor de seu titular anterior ou de um terceiro, em razão do implemento de uma condição que fora estabelecida pelas partes no momento da transferência da propriedade (no título) ou que estiver prevista na lei. A alienação fiduciária em garantia, por sua vez, é um contrato com o objetivo de garantia, que gera um direito real de desafetação sobre o bem em favor do fiduciante e que não transfere a propriedade plena ao fiduciário para que, após a garantia, ela se resolva.
O bem adquirido em alienação fiduciária em garantia, embora esteja em nome inicialmente do fiduciário – para, após, ser transmitido ao fiduciante com a quitação -, fica segregado de seu patrimônio, não pertencendo a ele de forma plena desvinculada de outras obrigações, visto que, mesmo com a consolidação da propriedade diante do inadimplemento, o fiduciário ainda está obrigado a realizar sua aquisição plena e transmissão. Assim, o bem tem a finalidade precípua de servir como garantia daquela relação contratada e apenas se desvincula do gravame quando o crédito é quitado pelo fiduciante ou quando ele é levado a leilão pelo fiduciário em caso de inadimplemento.
Ademais, parece que as modificações promovidas pela Lei de Garantias reforçam tal posicionamento. A saber.
A inserção do §4º ao art. 22 da lei 9.514/97, passou a admitir as “alienações fiduciárias sucessivas”, permitindo-se, portanto, a constituição de mais de uma garantia por alienação fiduciária sobre o mesmo bem3. Num primeiro momento, poder-se-ia ter o entendimento oposto, no sentido de que, justamente por se permitir apor mais de uma garantia sobre o mesmo bem, ele não estaria afetado à primeira alienação fiduciária. Contudo, o que deve ficar muito claro é que, para os credores de segundo grau para frente, a sua garantia ocorre sobre o direito real de aquisição que o fiduciante tem sobre o bem objeto da garantia (art. 1.368-B, CC)4.
Quando constituída uma alienação fiduciária em garantia, o devedor fiduciante adquire (até o momento da quitação plena) somente o direito real de aquisição sobre o bem, permanecendo a propriedade – afetada – sob titularidade do credor fiduciário. Dessa forma, o único direito que o fiduciante poderia efetivamente alienar em garantia é o seu direito real à reaquisição, leia-se desafetação, não tendo ainda outros direitos de propriedade sobre o bem passíveis de oneração.
Tanto que, pela própria redação do §4º, caso o primeiro credor fiduciário execute o bem, os demais apenas sub-rogar-se-ão no preço obtido, cancelando-se as AFGs posteriores, na medida em que o devedor fiduciante não conseguiu adquirir efetivamente seu direito de propriedade (desconstituindo-se também seu direito real à aquisição). Veja-se que a plena eficácia da alienação fiduciária se dá apenas para a primeira garantia5, tendo esse credor a obrigação apenas de disponibilizar eventual crédito remanescente aos demais.
Outra alteração legislativa que reforma o entendimento pela afetação é o “recarregamento” da garantia, inserido nos arts. 9-A a 9-D da lei 13.476/17, sobre constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários, art. 1.487-A do Código Civil e art. 167, II, 37 da Lei dos Registros Públicos.
Em resumo, passou-se a permitir a extensão da garantia nas situações de alienação fiduciária e hipoteca, de forma que tais garantias reais poderão servir para mais de uma obrigação ao mesmo tempo. Veja-se que a extensão se difere da sucessividade – nesta última, embora exista mais de uma obrigação, as garantias são, justamente, sucessivas, autônomas entre si.
Em âmbito da AFG, exige-se, para tanto, que o credor das obrigações garantidas seja o mesmo e que inexistam outras obrigações garantidas pelo bem a outros credores. Logicamente, não se poderia integrar a garantia para mais de uma obrigação se as partes fossem diversas e se o bem já estivesse onerado a terceiros6.
A possibilidade do recarregamento na AFG vai ao encontro do entendimento de que tal garantia gera um patrimônio separado, de forma que a afetação do bem pode ser estendida entre as partes da relação de garantia originária. Em outras palavras, as partes podem “otimizar” a destinação dada ao bem – qual seja a de garantia de alienação fiduciária – funcionando o direito para garantir mais de uma relação obrigacional de crédito entre as partes.
Na hipótese de se classificar o instituto como uma propriedade resolúvel, o recarregamento, na verdade, teria que alterar constantemente a “condição suspensiva”, de forma a adaptar os termos que permitiriam a resolução da propriedade em favor do devedor. Nesse cenário, a obrigação originária, portanto, seria necessariamente alterada, na medida em que sua conclusão não mais necessariamente geraria a resolução, estando pendentes outras obrigações garantidas pelo bem.
Não parece, contudo, que o recarregamento admita alterações no vínculo originário ou das outras obrigações constituídas pelas mesmas partes, entendendo-se que ocorre apenas a extensão da afetação do bem em razão de outros vínculos criados pelas partes, concluindo-se os termos das obrigações de maneira autônoma e permanecendo a afetação até a quitação de todos os créditos.
Assim, a adoção do entendimento da natureza da alienação fiduciária em garantia como patrimônio de afetação está em consonância com as novas medidas propostas pela lei 14.711/23. Outras novidades serão analisadas, oportunamente, nesta coluna; sigam conosco!
Sejam felizes!
[1] Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023)
[2] V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, vol. 5, t. 2, São Paulo, YK, 2020, p. 1775; N. Sóller, Alienação fiduciária em garantia: análise da propriedade fiduciária, do negócio fiduciário, da propriedade resolúvel, do patrimônio de afetação, do elemento de fidúcia e de seus antecedentes no direito romano, Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2023.
[3] § 4º Havendo alienações fiduciárias sucessivas da propriedade superveniente, as anteriores terão prioridade em relação às posteriores na excussão da garantia, observado que, no caso de excussão do imóvel pelo credor fiduciário anterior com alienação a terceiros, os direitos dos credores fiduciários posteriores sub-rogam-se no preço obtido, cancelando-se os registros das respectivas alienações fiduciárias. (Incluído pela Lei nº 14.711, de 2023).
[4] Nesse mesmo sentido, C. E. E. Oliveira, Lei das Garantias (lei 14.711/23): Uma análise detalhada, in Migalhas, s.l., 01.12.2023, pp. 16 e ss., disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/396275/lei-das-garantias-lei-14-711-23–uma-analise-detalhada [12.11.2023]. O autor defende de forma muito adequada que o melhor entendimento é o de que o direito gerado ao devedor fiduciante é o direito real à aquisição, que é atual, em vez da “propriedade superveniente” (termo utilizado pela própria lei), que seria um direito futuro, sob condição suspensiva.
[5] C. E. E. Oliveira, Lei cit. p. 12.
[6] Neste ponto, vale destacar que, para a alienação fiduciária em garantia, previu-se a possibilidade de recarregamento ainda quando houve garantias a instituição financeira diversa sobre o mesmo bem, desde que tal instituição seja integrante do mesmo sistema de crédito cooperativo da instituição financeira credora da operação original ou garantidora fidejussória da operação de crédito original – art. 9-A, §3º, Lei nº 13.476/1997.
*texto retirado do Portal Migalhas.