DIREITO DE SUPERFÍCIE
Luiz Antônio de Souza[1]
I. A ORDEM URBANÍSTICA
A ordem urbanística é um bem de natureza difusa, afigurando-se direito subjetivo e fundamental do corpo social. Daí porque se pode exigir do Poder Público que a implemente, não se podendo concebê-la como atividade discricionária, mas vinculada do Estado-Administração. E, obviamente, na implementação da ordem urbanística, interesses particulares são tutelados. Mas isso ocorre reflexamente, porque o interesse primário, essencial, de natureza transindividual, é instaurá-la para a concretização de uma cidade sustentável.
A Constituição Federal brasileira, no art. 21, inciso XX, dispõe que cabe à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano. E o art. 182 caput diz competir, aos Municípios, executar a política de desenvolvimento urbano, para que a cidade cumpra sua função social.
Por força do comando constitucional, foi editada, entre outras leis, o Estatuto da Cidade – Lei 10.257/01, que estabelece diretrizes gerais e instrumentos da política urbana.
Invariavelmente, qualquer medida, política, instrumento ou demanda que se adote, formule, exija ou ajuíze em favor da ordem urbanística, resulta em benefícios a particulares. Mas isso não faz perder a essência, o caráter difuso da proteção, pois a concretização da ordem urbanística é essencial para que uma cidade cumpra sua função social e ambiental – seja uma cidade sustentável.
II. FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA CIDADE E PROPRIEDADE URBANA
O art. 5º inciso XXII da CF/88 garante o direito de propriedade, todavia o inciso XXIII exige que cumpra a sua função social.
O art. 182 caput, ao tratar de politica urbana, dispõe que a política de desenvolvimento urbano deve atender as diretrizes fixadas em lei[1], para que a cidade cumpra sua função social. E o parágrafo 2º assinala que a propriedade urbana cumpre sua função social ao atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor.
Para cumprir sua função social, o exercício da propriedade urbana deve transcender o espírito individualista da mera aquisição, do domínio, do “ter pelo ter”, do “possuir por possuir”, com intuito especulativo.
A função social exige um plus, uma destinação que, a par de atender ao interesse particular do proprietário, que é legítimo, tenha como finalidade o interesse coletivo. É o possuir individual com uma diretriz, uma finalidade social, ou seja, a propriedade é mais um instrumento na busca da realização coletiva da sociedade no aspecto urbano.
Essa é uma das principais razões pelas quais a CF/88, no art. 182 § 4º, faculta ao Poder Público valer-se de instrumentos de indução, de fomento ao desenvolvimento urbano[2], na linha da diretriz de política urbana do art. 2º inciso VI e do Estatuto da Cidade[3].
III. DIREITO DE SUPERFÍCIE
Há de convir, porém, que nem sempre o proprietário de uma área urbana mantém o terreno não edificado, subutilizado ou não utilizado por especulação imobiliária. Muitas vezes detêm a propriedade, mas não tem recursos para dar-lhe uma destinação adequada.
A legislação nesse ponto, porém, não faz diferenciação. Não há, no plano legal, justificativa prevista para tanto. E esteja o imóvel sem destinação, por força de especulação ou não, poderá estar sujeito às regras dos arts. 5º a 8º do Estatuto da Cidade (destinação coletivo-urbana forçada).
Um dos instrumentos que o proprietário urbano pode se valer para dar uma destinação social à propriedade, sem abrir mão do domínio, isentando-se de sofrer os rigores dos instrumentos de intervenção acima mencionados, é o direito de superfície.
O direito de superfície proporciona ao proprietário urbano, mediante escritura pública registrada no Registro Imobiliário, manter o domínio do terreno e conceder a terceiro o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, de forma gratuita ou onerosa, por tempo determinado ou indeterminado, conforme contrato firmado.
O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que incidirem sobre a propriedade superficiária, devendo arcar, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do direito de superfície (salvo disposição em contrário do contrato respectivo). E também poderá transferir esse direito a terceiros (segundo o contrato), todavia a legislação contempla o proprietário da área com o direito de preferência, em igualdade de condições à oferta de terceiros. Em razão de morte do superficiário, tais direitos serão transmitidos aos herdeiros.
O proprietário do imóvel poderá aliená-lo, todavia a lei contempla o superficiário com o direito de preferência, nos mesmos termos acima. E ao final do prazo de concessão, que se extingue pelo advento do termo ou por descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário[4], o proprietário recuperará o pleno domínio do terreno, bem como das acessões e benfeitorias introduzidas no imóvel, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário no respectivo contrato.
IV. DIREITO DE SUPERFÍCIE E PODER PÚBLICO MUNICIPAL
O Plano Diretor da cidade de São Paulo[5] prevê, no art. 113, que “O Município poderá receber em concessão, diretamente ou por meio de seus órgãos, empresas ou autarquias, nos termos da legislação em vigor, o direito de superfície de bens imóveis para viabilizar a implementação de ações e objetivos previstos nesta lei, inclusive mediante a utilização do espaço aéreo e subterrâneo”.
Como o Município pode suplementar legislação federal[6] e estadual se couber[7], a legislação municipal, com permissão constitucional, prevê que o instituto pode ter o próprio Município como superficiário. Todavia, condiciona o Município a utilizar o bem para “viabilizar a implementação de ações e objetivos” previstos no Plano Diretor municipal, ou seja, a finalidade está definida na legislação municipal, é vinculante, e não pode ser desatendida, sob pena de desvio de finalidade, consequentemente tipificação como ato de improbidade administrativa.
Por outro lado, o Plano Diretor de São Paulo prevê, no art. 114, que “O Município poderá ceder, mediante contrapartida de interesse público, o direito de superfície de seus bens imóveis, inclusive o espaço aéreo e subterrâneo, com o objetivo de implantar as ações e objetivos previstos nesta lei, incluindo instalação de galerias compartilhadas de serviços públicos e para a produção de utilidades energéticas”.
A legislação municipal permite que o Município promova a concessão de bens imóveis de sua propriedade. Todavia, embora não conste expressamente, tal depende de avaliação prévia e licitação[8], cujo objeto deve garantir “contrapartida de interesse público”, ou seja, não há concessão gratuita. E o objetivo da concessão deve ser a implantação de “ações e objetivos previstos no plano diretor”, portanto a destinação é vinculada, ou seja, o edital deverá indicar obras, intervenções e medidas de cunho urbanístico e em perfeita homogeneidade com os comandos contidos no Plano Diretor municipal, sob pena de ocorrer expiação sob a luz da Lei de Improbidade Administrativa.
V. DIREITO DE SUPERFÍCIE E RESPONSABILIDADE AMBIENTAL
Uma última consideração. Ao se valer do direito de superfície, o proprietário deve atentar que eventual danosidade ambiental promovida pelo superficiário na propriedade, carreará também para ele, proprietário, em razão da natureza propter rem, a responsabilização solidária pelos danos ambientais. E a demanda, visando à reparação do dano ambiental, poderá ser promovida contra o proprietário ou o superficiário, isoladamente, ou contra ambos, à escolha do autor[9].
Cabe considerar, ainda, que eventual cláusula de exclusão de responsabilidade ambiental e urbanística que venha a ser pactuada, é irrelevante e não detém qualquer eficácia no plano da responsabilização ambiental, pois convenções particulares não podem afastar normas de ordem pública. Tal pactuação servirá, todavia, para permitir eventual extinção da concessão e em eventual ação regressiva, se a demanda for movida contra o proprietário do terreno.
É conveniente, pois, que no contrato entabulado, conste expressamente como obrigação contratual, passível de extinção do direito de superfície[10], a prática de condutas/atividades lesivas ao meio ambiente.
[1] Estão no art. 2º e incisos do Estatuto da Cidade – Lei 10.257/01.
[2] O art. 182 § 4º dispõe que faculta-se ao Poder Público, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos disciplinados pelo Estatuto da Cidade, que o proprietário de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, promova seu adequado aproveitamento, sob pena sucessivamente de parcelamento, edificação ou utilização compulsória (arts. 5º e 6º do Estatuto da Cidade), IPTU progressivo no tempo (art. 7º) e desapropriação com títulos da dívida pública (art. 8º).
[3] que determina ao Município promover a ordenação e o controle do uso do solo de forma a evitar “a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização”.
[4] A extinção deve ser averbada no Cartório de Registro de Imóveis.
[5] Lei Municipal 16.050/2014
[6] Compete à União elaborar normas gerais sobre direito urbanístico nos termos do art. 24, inciso I CF/88
[7] Art. 30, inciso II da CF/88
[8] Art. 17 Lei 8666/93
[9] Súmula 623 do STJ
[10] Art. 23, inciso II do Estatuto da Cidade – Lei 10.257/01
[1] Luiz Antônio de Souza, Procurador de Justiça (28º Procurador de Justiça da Procuradoria de Interesses Difusos e Coletivos); Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Professor Assistente-Doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Professor do Curso Damásio e do Instituto Damásio de Direito; Professor dos Cursos de Pós-Graduação da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, do COGEAE – Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC/SP, da ESA – Escola Superior de Advocacia.Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Urbanístico do Instituto Damásio de Direito chancelado pela Faculdade de Direito IBMEC-SP