Da alienação fiduciária de imóveis rurais a estrangeiros: contributos registrais ao agronegócio nacional
Por Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro[1]
Instituto jurídico largamente utilizado no cenário econômico contemporâneo, a alienação fiduciária de bens imóveis adveio ao ordenamento jurídico nacional, por intermédio da Lei 9.514/1997, como forma de modernização dos mercados financeiro e de capitais, visando dinamizar a concessão de crédito e depurar as formas de garantias[1], tendo, ineludivelmente, se inspirado na ideia de fiducia cum creditore do direito romano.
De outro bordo, a Lei 5.709/1971 e seu Regulamento (Decreto 74.965/1974) estabelecem restrições à aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, por pessoas jurídicas autorizadas a funcionar no Brasil e por pessoas jurídicas brasileiras das quais participem pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, que tenham a maioria de seu capital social e residam ou tenham sede no exterior[2].
Observe-se que a incidência e os limites de aplicação da Lei 5.709/1971 gera uma série de discussões e questões controvertidas, impactando, sobretudo, as atividades de notários e registradores que possuem destacada responsabilidade civil e criminal pela correta observância da referida legislação[3].
É nesse cenário de incertezas e dubiedades que exsurge sensível questionamento a respeito da incidência ou não das limitações da Lei 5.709/1971 na de contratação de alienação fiduciária sobre imóveis rurais em favor dessas pessoas estrangeiras, já em que por esse contrato o fiduciário (adquirente) estaria investido na propriedade do imóvel.
Na hipótese, entretanto, algumas acomodações interpretativas devem ser feitas.
É oportuno relembrar que na complexa relação jurídica do instituto da alienação fiduciária de bens imóveis, tem-se negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. Denota-se, aqui, que ambos os players ostentam direito real sobre a coisa, ou seja, o credor fiduciário terá a propriedade resolúvel do imóvel, ao passo que o devedor fiduciante titulariza direito (real) de reaquisição do bem. Demais disso, sob o cariz possessório, recorde-se que com a constituição da propriedade fiduciária – o que somente ocorre mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título – dar-se-á o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.
Infere-se, pois, que na alienação fiduciária definitivamente não há a transmissão do domínio pleno ou útil ao credor fiduciário, com os atributos do art. 1.288 do Código Civil, a conferir a faculdade de explorar o potencial econômico do imóvel em proveito próprio.
Ao reverso.
Na alienação fiduciária em garantia há a afetação do bem ao cumprimento da obrigação (Código Civil, art. 1.419), e não à pessoa do adquirente (fiduciário). Dito de outro modo, limita-se a atribuir ao fiduciário o direito sobre o produto da expropriação do imóvel em caso de inadimplemento da obrigação garantida, negando-lhe, por força da vedação ao pacto comissório, qualquer direito de apropriação do produto da exploração econômica do bem[4].
Exatamente nesse jaez a Lei 13.043/2014 alterou de modo relevante o art. 1.367 do Código Civil, em sua parte final, e inseriu a ressalva de que “a propriedade fiduciária em garantia […] não se equipara, para quaisquer efeitos, à propriedade plena de que trata o art. 1.231”. Esta ressalva demonstra a intenção legislativa de visualizar de modo claro e evidente o divórcio necessário entre “propriedade fiduciária” e “propriedade plena”[5].
De mais a mais, apesar de certa divergência na seara doutrinária sobre a natureza jurídica da alienação fiduciária de bem imóvel, tem prevalecido o entendimento de que a propriedade fiduciária é especial direito real de garantia.
Partindo-se das premissas acima aventadas é seguro concluir que na constituição de alienação fiduciária sobre imóvel rural em favor de credor estrangeiro (rectius: para o registro do contrato que lhe serve título no Registro de Imóveis) não se faz necessário observar qualquer restrição diante da não incidência da Lei 5.709/1971 quando da instituição da propriedade fiduciária.
Em passo seguinte, situação diversa ocorrerá quando da eventual consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, que se concretiza mediante ato de averbação na matrícula do imóvel, à vista da prova do pagamento do imposto de transmissão inter vivos (ITBI) e, se for o caso, do laudêmio, consoante art. 26, § 7º da Lei 9.514/1997. É dizer: para ultimar a consolidação da propriedade no caso vertente, será indispensável a observância pelo Registrador de Imóveis das restrições da Lei 5.709/1971.
Percebe-se, sem dificuldade, que as restrições aos estrangeiros, impostas pela Lei 5.709/1971, passam a ter relevância apenas no momento da consolidação da propriedade, mormente quando da consagração da propriedade plena ao credor estrangeiro.
Não se pode esquecer, no entanto, que as indigitadas restrições não incidirão se o credor fiduciário for instituição financeira estrangeira (leia-se: pessoa jurídica). Isso porque a instituição financeira estrangeira possui expressa autorização quanto a dispensa em receber o assentimento prévio do Conselho de Segurança Nacional para a consolidação de imóvel rural em faixa de fronteira. Ocorre que a Lei 6.634/1979, com a redação dada pela Lei 13.097/2015, dispensa a autorização para oneração, de terras situadas na faixa de fronteira – legalmente consideradas como indispensáveis à segurança nacional –, quando o credor for instituição financeira estrangeira. Tal dispensa legal da autorização se estende ao recebimento do imóvel objeto da garantia em liquidação do empréstimo ao qual está vinculado. Nesse caso, a dispensa se justifica porque as instituições financeiras, em geral, são obrigadas por lei a vender os bens recebidos em liquidação de empréstimos (Lei 13.506/2017, art. 3º, § 2º, II)[6].
A partir dessa intelecção, por lógica, a dispensa legal de autorizações aplicar-se-ia também à consolidação da propriedade em favor da instituição financeira estrangeira, afinal, mesmo após frustrados os leilões previstos nos § § 1º e 2º do art. 27 da Lei 9.514/1997, não há a aquisição da propriedade plena do caput do art. 1.228 do Código Civil. Frise-se uma vez mais: conforme as leis e atos normativos que regem as instituições financeiras, tal propriedade será sempre precária e condicionada à alienação do imóvel.
Forte abraço aos leitores! Vida longa ao Portal!
[1] CHALHUB, Melhim Namem. Alienação Fiduciária: negócio fiduciário. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 2-7.
[2] Lei 5.709/1971, Art. 1º – O estrangeiro residente no País e a pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil só poderão adquirir imóvel rural na forma prevista nesta Lei. § 1º – Fica, todavia, sujeita ao regime estabelecido por esta Lei a pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no Exterior.
[3] Lei 5.709/1971, Art. 15. A aquisição de imóvel rural, que viole as prescrições desta lei, é nula de pleno direito. O tabelião que lavrar a escritura e o oficial de registro que a transcrever responderão civilmente pelos danos que causarem aos contratantes, sem prejuízo da responsabilidade criminal por prevaricação ou falsidade ideológica.
[4] CHALHUB, Melhim Namem. Alienação Fiduciária de imóveis rurais a estrangeiro. IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil. 10 set. 2016. Acesso em: 17 nov. 2019.
[5] JACINTO, Augusto Reinke. A instituição financeira estrangeira e a alienação fiduciária de imóvel rural. Migalhas, 04 fev. 2019. Acesso em: 14 nov. 2019.
[6] A Circular 909/1985 do BACEN regulamentou os procedimentos indispensáveis para que as instituições financeiras necessariamente promovam a alienação dos bens não de uso próprio, classificados contabilmente no “ativo circulante” dessas instituições.
[1] Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro é Registrador de Imóveis no Estado de São Paulo. Exerce atualmente a delegação do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, Civil de Pessoas Jurídicas e Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas da Comarca de Pedreira/SP. Pesquisador da Escola Nacional de Notários e Registradores (ENNOR) nos departamentos de Direito e Economia e de Registro de Imóveis. Professor de Direito Notarial e Registral em cursos de graduação e pós-graduação.
Como citar este artigo: RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Como funciona a Alienação Fiduciária de Imóveis Rurais a Estrangeiros? (Da alienação fiduciária de imóveis rurais a estrangeiros: contributos registrais ao agronegócio nacional). Portal VFK/YK, São Paulo, 24 jun. 2020. Disponível em: https://vfkeducacao.com/portal/como-funciona-a-alienacao-fiduciaria-de-imoveis-rurais-a-estrangeiros/. Acesso em: 00 jan. 0000.