Fernando Mady
“A” era casado com “B”há vinte anos. Eram felizes, tiveram filhos e netos. Porém, se divorciaram, cada qual seguiu sua vida, completaram 70 anos, até que A descobriu que estava com câncer e faleceria em breve. Embora fosse aposentado pelo INSS, sua ex-esposa, idosa, era pobre. Um de seus filhos, maior e capaz, não recebia salário suficiente para seus sustento e de seu filho. A resolve se casar novamente com B, a fim de garantir o INSS, o qual se destinaria de fato ao filho. Ao iniciarem o processo de habilitação, confessam o motivo do matrimônio. Não havia impedimentos, muito menos causas suspensivas legais presentes. O que deve fazer o registrador?
O código civil de 2002 se apresenta como um sistema. Foi escrito de forma dedutivista, em cuja parte geral constam normas que servem de base a todo sistema contido nos Livros da Parte Especial e toda e qualquer norma de direito privado.
No art. 167, ao tratar das nulidades do negócios jurídicos, enuncia a simulação como ato nulo. Por não ser possível ao Juiz ou às partes relevarem o presente vício, o qual é insanável e imprescritível, o ato deve ser rechaçado pelo oficial de registro, como na presente situação: casamento simulado.
Há corrente doutrinária diversa, no entanto, a prevalente é a interpretação esposada por Tartuce, exempli gratia, (2017, p. 801) caso se constate o vício da simulação na vontade dos nubentes o “casamento não poderá ser utilizada com o intuito de enriquecimento sem causa, o que pode motivar a decretação da sua nulidade absoluta, por fraude à lei imperativa (art. 166, VI, do CC). Igualmente não prevalecerá se decorrer de simulação absoluta, o que de igual modo gera a sua nulidade. (art. 167 do CC)” – TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil – volume único – 7ª ed., Editora Método, 2017.
Lins e Silva ( 2003, p.56), comentando o art. 1.556 do Código Civil de 2002, aventa a possibilidade da ocorrência de tal tipo de simulação, mas reconhece ser assunto complexo e de solução bastante subjetiva:
Não afasto a possibilidade de um casamento ser realizado por simulação, em que as partes pretenderiam obter vantagens ilícitas de terceiros com a utilização do patrimônio, o que teria de ser denunciado ao Ministério Público, para que se legitimasse a condição ativa para a propositura da ação. Ou até mesmo eventualmente os herdeiros necessários poderiam intervir como autores, quando comprovassem que o casamento teve por objetivo formalizar uma relação sucessória entre as partes com o objetivo de uma vantagem para um ou para os dois cônjuges. O mesmo ocorreria, para fins de benefício previdenciário, post mortem. É muito complexo e subjetivo esse entendimento, mas não afasto nos dias atuais a possibilidade de ser engendrado o ato com finalidade distinta da constituição de uma família).
Assim, é função do oficial de registro e seus substitutos informar aos nubentes de forma clara o que significa o procedimento de habilitação e os efeitos dele decorrentes, bem como dos regimes de bens existentes ao matrimônio (art. 1.528,CC).
Caso sua instituição gere flagrante nulidade por vício social (simulação), passível de ação declaratória de nulidade, o oficial estará obrigado a informar aos nubentes dos efeito jurídicos decorrentes, e elaborar nota explicativa, escrita e fundamentada.
Conforme o Código Civil, art. 167, § 1º, “in verbis”:
“Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
(…)
II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira”
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.330.023 – RN, analisou um caso de casamento nuncupativo, cujos argumentos lançados reforçam a possibilidade jurídica de declaração de nulidade em casamento inquinado pelo vício da simulação, a saber:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CASAMENTO NUNCUPATIVO. VALIDADE. COMPROVAÇÃO DE VÍCIO QUANTO A MANIFESTAÇÃO DA VONTADE INEQUÍVOCA DO MORIBUNDO EM CONVOLAR NÚPCIAS. COMPROVAÇÃO.
[…] 5. Não existem objetivos pré-constituídos para o casamento, que descumpridos, imporiam sua nulidade, mormente naqueles realizados com evidente possibilidade de óbito de um dos nubentes – casamento nuncupativo -, pois esses se afastam tanto do usual que, salvaguardada as situações constantes dos arts. 166 e 167 do CC-02, que tratam das nulidades do negócio jurídico, devem, independentemente do fim perseguido pelos nubentes, serem ratificados judicialmente.
E no amplo espectro que se forma com essa assertiva, nada impede que o casamento nuncupativo realizado tenha como motivação central, ou única, a consolidação de meros efeitos sucessórios em favor de um dos nubentes – pois essa circunstância não macula o ato com um dos vícios citados nos arts. 166 e 167 do CC-02: incapacidade; ilicitude do motivo e do objeto; malferimento da forma, fraude ou simulação. Recurso ao qual se nega provimento.
Sabe-se que de ato nulo não advém efeitos, embora em direito de família, sim. A função do processo de habilitação é profilática, isto é, de prevenir litígios futuros ou prejuízos à ordem pública e aos bons costumes”.
Inclusive, o Tribunal do Rio Grande do Sul segue a corrente, exempli gratia:
“APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. ANULAÇÃO DE CASAMENTO. MATRIMÔNIO QUE SE REALIZOU COM FINS EXCLUSIVAMENTE PREVIDENCIÁRIOS. SIMULAÇÃO. Desarmonia entre a vontade formal, que leva à realização do ato jurídico, e a vontade subjacente, visando apenas a proporcionar pensão previdenciária para a esposa. Vício embutido na vontade dos contraentes, com simulação da vontade de constituição de vida em comum, quando o casamento apenas serviu como meio de conferir à nubente a qualidade de dependente, com posterior pensão previdenciária. Matéria de interesse público, não só por afetar a formação da família, mas por traduzir, por igual, burla ao espírito do código civil e às normas previdenciárias, assim como ofensa à moral média, transacionando-se bem indisponível, como se negócio fosse. Idade dos nubentes. Ancião, de 91 anos, que casa com mulher 43 anos mais jovem, morrendo, pouco depois, de câncer. Ausência de demonstração de relacionamento afetivo entre estes. Companheiro da contraente que no dia das bodas comparece, esperando-a do lado de fora. Desejo do de cujus em ser grato à empregada, de inúmeros anos, na relação laboral. Precedentes jurisprudenciais. Apelo improvido. (Apelação Cível No 70026541664, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vasco Della Giustina, Julgado em 03/12/2008)
Incide inclusive na esfera penal dos pretendentes, pois se trata de fraude ao INSS. Conduta que consubstancia a crime, nos termos da redação do art. 171, caput, c.c. §3º, do Código Penal, in verbis:
“Estelionato
Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis
(…)
3º – A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência”.
Ademais o art. 74, §2º, da Lei nº 8.213/91 é claro. É ilícita a aquisição da pensão através desse meio, conforme se depreende:
“Art. 74. A pensão por morte será devida ao conjunto dos dependentes do segurado que falecer, aposentado ou não, a contar da data:
2º Perde o direito à pensão por morte o cônjuge, o companheiro ou a companheira se comprovada, a qualquer tempo, simulação ou fraude no casamento ou na união estável, ou a formalização desses com o fim exclusivo de constituir benefício previdenciário, apuradas em processo judicial no qual será assegurado o direito ao contraditório e à ampla defesa”.
O Superior Tribunal de Justiça, no verbete da Súmula 24, assim dispõe: “Aplica-se ao crime de estelionato, em que figure como vítima entidade autárquica da Previdência Social, a qualificadora do § 3º do art. 171 do Código Penal”.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – PROCESSUAL CIVIL – PREVIDENCIÁRIO – AÇÃO ANULATÓRIA – “CASAMENTO PREVIDENCIÁRIO” – MATÉRIA LITIGIOSA: NATUREZA: PREVIDENCIÁRIO – FAMÍLIA: QUESTÃO INCIDENTAL. 1. A natureza da ação fixa-se pela matéria principal do feito, não sendo, assim, determinante o quanto se debata incidentalmente. 2. Discutindo-se na causa o direito previdenciário do cônjuge supérstite acerca da sua condição de beneficiário de pensão por morte do outro cônjuge, e para tanto trazendo ao debate um possível casamento simulado, a natureza do feito não toma a forma ou fundo marcadamente de questão de direito de família, prevalecendo, na ação judicial, o caráter previdenciário.
Há larga jurisprudência nesse sentido,
APELAÇÃO CÍVEL – AGRAVO RETIDO – PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO ANULATÓRIA – APELAÇÃO ANTERIOR – PRECLUSÃO. A questão relativa ao conhecimento do agravo retido interposto pela apelante constitui matéria preclusa se já indeferida a pretensão nele aviada por acórdão irrecorrido anterior (ap. cív. no 1.0024.12.127632-3/006), em que não se conheceu do agravo retido.
APELAÇÃO CÍVEL – PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO ANULATÓRIA – PRELIMINARES – VARA DA FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL E AUTARQUIAS: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA – ILEGITIMIDADE ATIVA – ILEGITIMIDADE PASSIVA – ANULAÇÃO DO CASAMENTO E DESOBRIGAÇÃO DO IPSEMG À PENSÃO POR MORTE: CUMULAÇÃO: IMPOSSIBILIDADE – APELAÇÃO ANTERIOR – PRECLUSÃO. Preclusas as alegações de incompetência absoluta do Juízo da Vara da Fazenda Pública Estadual e Autarquias (i), de ilegitimidade passiva do espólio (ii) e da impossibilidade de cumulação do pedido de anulação do casamento com o de desobrigação do IPSEMG de conceder à apelante pensão por morte (iii), nos termos explicitados em anterior acórdão irrecorrido deste Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG).
APELAÇÃO CÍVEL – PROCESSUAL CIVIL – PREVIDENCIÁRIO – AÇÃO ANULATÓRIA – BENEFÍCIO: PENSÃO POR MORTE – FRAUDE À LEI – SIMULAÇÃO – CASAMENTO – LEGALIDADE – PROVAS: VALORAÇÃO. 1 . Pertence ao julgador a valoração das provas em sede de processo judicial, à luz do convencimento racional motivado. 2. Discutida a ocorrência de fraude à lei previdenciária e havendo possibilidade de que ela se tenha dado valendo-se de um casamento legal, é possível que se invista na investigação desse conúbio, a ponto de nele reconhecer-se a ocorrência de simulação, aí então passível de ser declarada incidentalmente, sem, com isso, levar à nulidade do casamento, senão à sua anulação, para o exclusivo fim de invalidar a inscrição de beneficiário da previdência social do seguro de pensão por morte.
APELAÇÃO CÍVEL – PREVIDENCIÁRIO – DIREITO CIVIL – PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO ANULATÓRIA – BENEFÍCIO: PENSÃO POR MORTE – “CASAMENTO PREVIDENCIÁRIO” (“CASAMENTO NEGÓCIO”): SIMULAÇÃO RELATIVA FRAUDULENTA PARCIAL: ANULAÇÃO INCIDENTAL – FORMALIDADES: CIRCUNSTÂNCIAS E ELEMENTOS SUBJETIVOS – AUTONOMIA PRIVADA: CONTROLE VALORATIVO – ABUSO DE DIREITO – MÁ-FÉ – LEGALIDADE CONSTITUCIONAL: AFRONTA – PRINCÍPIO DA MORALIDADE: OFENSA – DEPENDÊNCIA PREVIDENCIÁRIA: FRAUDE – PENSÃO POR MORTE: INDEFERIMENTO – ANÁLISE JUDICIAL: DECISÃO MOTIVADA DO JUIZ. 1. Aplica-se ao casamento o regime geral das nulidades do Código Civil Brasileiro (CCB), cabendo embora sua declaração incidental em ação ordinária, sendo assim ineficaz quando simulado para o fim de transmitir direito previdenciário a terceira pessoa, ali indicada como cônjuge apenas para essa finalidade (fraus legis). 2. Não será indene de análise judicial a simulação relativa fraudulenta parcial de casamento, no quanto interfira em seara de direito previdenciário, arguido por terceiro prejudicado (órgão previdenciário pagador de benefício) 3. Em casos envolvendo denunciada simulação relativa fraudulenta parcial no casamento, o magistrado deve analisar as questões fáticas, aduzindo, pela subsunção, o embasamento normativo ou principiológico que incida na espécie (fundamentação) e que o levou à conclusão (convencimento jurídico motivado/per (TJMG – Apelação Cível 1.0024.12.127632-3/007, Relator(a): Des.(a) Oliveira Firmo , 7ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 06/05/2019, publicação da súmula em 14/05/2019)
A título de curiosidade, o Regime Geral de previdência social – RGPS – está deficitário. No ano de 2017, chegou a 182 bilhões de reais. Esse valor equivale a 2,8% do Produto Interno Bruto, considerado pelo Poder Constituinte um dos motivos da Emenda Constitucional n° 103 de 2019 e a Reforma da Previdência.
Como citar este artigo: MADY, Fernando. Caso prático: Casamento simulado. Portal VFK/YK, São Paulo, 26 jun. 2020. Disponível em: <https://vfkeducacao.com/portal/caso-pratico-casamento-simulado/>. Acesso em: 00 jan. 0000