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Avanço ou retrocesso: os escritos particulares.

Vitor Frederico Kümpel e Fernando Keutenedjian Mady

A Medida Provisória 1.162, de 14 de fevereiro de 2023, aprovada com alterações pela lei 14.620, de 13 de julho de 2023, inaugurou mais uma rodada de modificações em diversos diplomas legais, dentre os quais: a Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/1973). Analisar-se-á, neste espaço, as nuances do art. 221, inc. II da lei 6.015/1973 e a sua mutação redacional.

O vocábulo “título”, em uma primeira acepção, significa a causa de um direito, a sua razão de existir com o negócio jurídico base contido em seu substrato material. Em segunda acepção, porém, pode conter outro significado, como o próprio documento escrito, substrato do direito originado  de um negócio jurídico.1 Apesar de existirem outras acepções, estas duas são as que interessam ao artigo.

Em âmbito registral imobiliário, é considerado título material a  causa para o registro de atos e negócios jurídicos constitutivos, modificativos, translativos e extintivos de direitos reais e outros com previsão expressa em lei. Isto é, consiste no instrumento no qual se exterioriza o direito real, ou o ato ou o negócio jurídico imobiliário.

Em sentido formal, o título se confunde com documento, equiparando-se à segunda acepção. Logo, pode ser definido como o papel escrito ou o arquivo eletrônico que contém um ato com efeitos jurídicos. A sua função, então, é comprobatória da existência de atos   e negócios jurídicos com aptidão à produção de efeitos.

Em relação a esta segunda categoria, os títulos aptos para ingresso no fólio  real estão elencados no rol do art. 221 da Lei dos Registros Públicos. Pelo objeto do presente artigo, examinar-se-á os instrumentos particulares (LRP, art. 221, II), cuja redação anterior à Medida Provisória 1.162/2023 era: “Somente são admitidos registro: (…) II – escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e pelas testemunhas, com as firmas reconhecidas”.

No sentido da redação do artigo, os instrumentos particulares eram hábeis para serem aceitos como válidos a ingressar no fólio real quando: i. autorizados por lei; ii. com o reconhecimento de firma na assinatura das partes e das testemunhas. Tratava-se, portanto, de exceção à regra da forma pública. Esta é a razão de ser  necessária a previsão em Lei.

O Código Civil, de 2002, nada dispôs sobre a participação de testemunhas no ato ou negócio praticado, segundo o texto do art. 221 do novel  diploma.2 O Código de Processo Civil, de 2015, por sua vez, exige as testemunhas para a configuração de títulos executivos extrajudiciais (CPC, art. 784, III).

A divergência legislativa quanto à obrigatoriedade da presença e assinatura de duas testemunhas no documento foi fonte de divergência jurisprudencial em São Paulo.

Argumenta-se, de um lado, pela aplicação do princípio tempus regit actum para fins de dispensar as testemunhas do título, ante a regra do Código Civil de 2002. Assim, após a vigência do Código Civil, a participação de testemunhas era prescindível, considerando-se revogada tacitamente a redação da Lei dos Registros Públicos, conforme interpretação do disposto no art. 2º, § 2º, da LINDB.3

 De outro lado, argumenta-se que o art. 221, inc. II e art. 169, inc. III, ambos da Lei 6.015/1973, são regras especiais e, por isso, em atenção ao critério da especialidade, não foram revogadas pelo codex civil no que tange à assinatura das duas testemunhas.

Ressalte-se que o título emitido do Sistema de Financiamento Habitacional, e, em São Paulo, em caso das  cédulas de crédito rural, industrial, à exportação e comercial, inclusive a Cédula de Crédito Bancário, eram exceções ao reconhecimento de firma. Contudo, o cancelamento, por averbação da quitação do débito, exigia o reconhecimento da firma do credor ou seu representante, comprovando-se a autenticidade do  documento.4

Com a publicação da Medida Provisória nº 1.162, de 14 de fevereiro de 2023, a redação do inciso II do art. 221 da Lei dos Registros Públicos foi alterada no seguinte sentido: “Somente são admitidos registro: (…) escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes, dispensados as testemunhas e o reconhecimento de    firmas, quando se tratar de atos praticados por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário, autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública”.

Em interpretação gramatical, manteve-se a sistemática anterior para o ingresso dos escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes, porém, no caso de instituições financeiras que concedam crédito imobiliário, que tenham autorizada a celebração de instrumento com força de escritura  pública, o reconhecimento de firma e as testemunhas são dispensáveis. Deste modo, pelo critério cronológico e especial, prevalece o sentido da   Lei dos Registros Públicos sobre o Código Civil, ressalvadas às instituições autorizadas a emitir título com força pública.

Por fim, com a conversão da Medida Provisória na lei 14.620 de 13 de julho de 2023, a redação do inciso II do art. 221 foi novamente alterado, estabelecendo o seguinte: “Somente são admitidos a registro: escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e pelas testemunhas, com as firmas reconhecidas”.

Deste modo, a regra é assinatura das partes e o reconhecimento de firma para que o instrumento particular seja admitido para registro, de forma que os registradores de imóveis deverão seguir estes requisitos para os títulos prenotados a partir de então.

Como exceção ao reconhecimento de firma e assinatura das testemunhas, o §5º do art. 221, da LRP, incluído pela Lei nº 14.620/2023, prevê: “os escritos particulares a que se refere o inciso II do caput deste artigo, quando relativos    a atos praticados por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública, dispensam as testemunhas   e o reconhecimento de firma”.

Sendo assim, as instituições financeiras, contanto que atuem com crédito imobiliário,  e tenham autorização para firmar instrumentos particulares, dispensam as testemunhas e o reconhecimento de firma.

O direito material é sufragado pela formalidade imposta para atos de registro em que as partes sejam desprovidas das qualidades supramencionadas. Porém, o ingresso de títulos formais deveria ser facilitado, na esteira da Lei de Liberdade Econômica e da Lei nº 14.382/2022, valorizando-se o direito material, que rege a necessidade de formalidades.

Considera-se o entendimento do Conselho Nacional de Justiça, que decidiu: “lei 13.726/2018 (Lei de Desburocratização) – Incidência aos Serviços de Registros de Imóveis – Os serviços de autenticação, reconhecimento de firma e outros praticados nas serventias brasileiras, por encerrar uma relação de natureza privada do cidadão com o cartório, não estão incluídos, para fins de dispensa, na lei 13.726/2018, muito menos com a possibilidade de serem praticados com isenção de emolumentos – Aplicação uniforme em todo o território nacional – Decisão em caráter normativo”5

Por todo o exposto, é possível observar que houve um retrocesso com relação ao que já havia sido, de alguma forma, solucionado pelas jurisprudências administrativas, persistindo a dissonância entre o Código Civil e a lei especial. Como lege ferenda, propõe-se a previsão redacional do art. 221, II da LRP, da seguinte maneira: “Somente são admitidos registro: II. escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes com as firmas reconhecidas”, em prestígio ao Código Civil e aos direitos materiais. A forma está garantida pelo reconhecimento de firma ou assinatura eletrônica com certificado digital, atualmente, a depender se o título for físico ou eletrônico. 

Sejam Felizes.


1 DE PLACIDO E SILVA, Oscar Joseph. Vocabulário jurídico. 18ª ed. rev. e atual. por Nagib Slaibi Filho e  Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 2.116.

2 “Art. 221 do Código Civil de 2002: “O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público. Parágrafo único. A prova do instrumento particular pode suprir-se pelas outras de caráter especial”.

3 CSMSP, Apelação Cível nº 0022843-24.2015.8.26.0554, rel. Des. Manoel Pereira. Cf. Apel. nº 0022843-24.2015.8.26.0554, rel. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 4-8-2016. Em outro julgado constou: “embora altamente recomendável, não há exigência – legal ou normativa – de que o instrumento particular esteja rubricado por aqueles que participaram do negócio jurídico.” (CSMSP, Apel. Cív. nº 0026786-24.2013.8.26.0100, rel. Hamilton Elliot Akel, j. 18-3-2004).

4 A lei 13.986/2020 revogou o item 13 do inciso I do art. 167 da Lei de Registros Públicos, portanto, atualmente, as cédulas de crédito rural não são hábeis a registro. 

5 CNJ – Pedido de Providências n. 0002986-87.2019.2.00.0000 – Ministro Humberto Martins.


*texto retirado do Portal Migalhas.