Vitor Frederico Kümpel e Fernando Keutenedjian Mady
A evolução do fólio real no Brasil evidencia que a matriz dogmática da matrícula não é apenas uma construção formal, mas elemento nuclear de todo o sistema de transmissão. Com o tempo, o registro deixou de ser visto apenas como instrumento de publicidade para assumir, em diversas hipóteses legais, a função de verdadeiro modo de aquisição, com efeitos ora meramente declaratórios, ora propriamente constitutivos. Essa mudança de enfoque, já delineada por AFRÂNIO DE CARVALHO ao distinguir os sistemas consensual, publicista e eclético, permite analisar o cenário atual: o provimento CNJ 195/25 reforça o vetor publicista (governança de dados e interoperabilidade), sem, contudo, afastar a lógica tradicional segundo a qual a inscrição continua sendo requisito indispensável para a mutação jurídico-real nas hipóteses previstas em lei1.
A fase pré-registral estende-se desde o Tratado de Tordesilhas, de 1494, até a extinção do sistema de sesmarias, em 1822, abrangendo, nesse intervalo, um período de predominância do regime possessório, A fase registral inicia-se com a lei de terras (lei 601/1850), tendo como marco decisivo o decreto 1.318/1854, que tornou obrigatório o registro das terras no Brasil.2
O decreto 3.453, de 26/4/1865, reformou a legislação hipotecária ao regulamentar a lei 1.237/1864 e instituir, em todas as comarcas do Império, o Registro Geral, em vigor desde 25/12/1864. Com ele, o Brasil abandona o modelo meramente cadastral e passa ao registro de títulos qualificados, transfere a função registral do vigário para tabeliães ou escrivães e cria a figura do oficial do registro geral, subordinado aos juízes de direito, com possibilidade de contratar suboficiais, embora os lançamentos no Livro Protocolo ficassem reservados ao próprio oficial.
O sistema registral foi consolidado com a lei 6.015, de 31/12/1973, fixando a estrutura matricial do fólio real e delimitando os atos de registro e averbação. Até a edição da referida lei, o regime registral brasileiro era disciplinado pelo decreto 4.857/1939, voltado essencialmente às transmissões de domínio e à constituição de garantias reais, em especial a hipoteca, em consonância com o CC de 1916. Adotava-se então o sistema de fólio pessoal3, estruturado em torno da transcrição imobiliária: os assentos eram organizados segundo o nome dos titulares de direitos, reunindo-se, para cada pessoa, as informações relativas aos imóveis de que fosse proprietária ou sobre os quais detivesse algum direito. Nessa lógica, transcreviam-se os títulos, e não propriamente os imóveis, que ingressavam no Registro de Imóveis de forma indireta.
A lei 6.015/1973 promoveu profunda reforma desse modelo ao estabelecer uma migração gradativa do fólio pessoal para o fólio real, introduzindo, no âmbito do Registro de Imóveis comum, a figura da matrícula – até então restrita ao sistema Torrens. A partir desse marco, cada imóvel passou a ser identificado em uma folha própria, na qual se concentram, de modo sistemático e organizado, os atos referentes à sua situação jurídica, conferindo maior racionalidade, transparência e controle ao sistema registral imobiliário.4
A matrícula, nesse sentido, inaugura a história jurídico-real de cada imóvel, o registro constitui e transmite direito reais, enquanto a averbação atualiza o fólio com fatos modificativos, cancelamentos e elementos acessórios. No plano dogmático, sobressai a regra do efeito constitutivo da inscrição para a transmissão imobiliária inter vivos (arts. 1.227 e 1.245 do CC), o que reforça a centralidade da qualificação registral e da oponibilidade erga omnes.
No século XXI, a paulatina digitalização dos serviços e a integração de bases de dados inauguraram um novo paradigma, inicialmente com o SREI e, posteriormente, com o SERP (lei 14.382, de 27/6/22), culminando na institucionalização de módulos de governança de dados pelo provimento CNJ 195, de 3/9/25. O resultado é a passagem de um modelo centrado no título e no fólio real para um modelo de governança de dados, no qual a publicidade formal convive com a publicidade informacional, com impacto direto na qualificação.
A disciplina do Código Nacional de Normas da CN/CNJ-Extra fornece regramentos que dialogam com a transformação digital. Ao estabelecer normas nacionais e uma comissão consultiva permanente, cria-se um ambiente institucional propício à atualização contínua das rotinas de qualificação e de comunicação entre serventias e com o ONR, em sintonia com a necessidade de padronizar e sofisticar o conteúdo das matrículas.
A lei 6.015/1973, em seu art. 176, § 1º, II, já estabelecia os requisitos essenciais do fólio real. O provimento 195/25, porém, ao inserir o Capítulo IX – “Da especialidade objetiva e subjetiva e das demais informações obrigatórias da matrícula” – no Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial, aprofunda e detalha esses elementos, exigindo que, no ato de abertura, a matrícula contenha não apenas os dados tradicionais, mas também o CNM – Código Nacional de Matrícula, a área expressa em metros quadrados ou hectares (conforme a natureza urbana ou rural do imóvel), a descrição perimetral georreferenciada e a indicação dos códigos dos cadastros imobiliários obrigatórios que incidam, total ou parcialmente, sobre a área matriculada. Trata-se de um reforço às dimensões da especialidade objetiva e subjetiva, voltado à consolidação de um cadastro jurídico mais preciso e interoperável.5
Nesse contexto, o papel do registrador de imóveis deixa de ser essencialmente reativo, limitado à inscrição de títulos, para assumir uma função proativa de controle de qualidade do acervo, prevenção de litígios e saneamento contínuo das matrículas. É exatamente nesse ponto que se insere a averbação de saneamento, concebida como instrumento de correção e complementação do fólio real em sede administrativa, evitando a necessidade de se recorrer, em grande parte dos casos, a procedimentos judiciais de retificação.6
O provimento 195/25, ao criar a Seção II – “Das Averbações de Saneamento”, sistematiza critérios e procedimentos que permitem ao registrador identificar lacunas, imprecisões e omissões e promover sua regularização diretamente no registro. A averbação de saneamento consiste na atuação do registrador para corrigir ou complementar a matrícula sempre que, na qualificação do título, forem constatadas falhas na especialidade objetiva (descrição do imóvel, área, confrontações, georreferenciamento, cadastros CIF, CCIR, CAR, CIB, NIRF etc.) ou na especialidade subjetiva (qualificação dos titulares). Em regra, determinados atos – como constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais, parcelamento/unificação do solo e instituição de condomínio – não podem ser praticados enquanto essas omissões ou incorreções não forem sanadas, podendo ser necessária, inclusive, a retificação prevista nos arts. 212 e 213 da LRP.7
O provimento, porém, excepciona essa exigência para atos de garantia real ou pessoal com eficácia real e para atos de constrição ou restrição judicial/administrativa, em razão do interesse econômico e da urgência. Para padronizar e simplificar, determina-se que a atualização de vários dados objetivos seja feita em uma única averbação, bem como a inclusão de todos os dados pessoais faltantes em um só ato por pessoa ou casal, prevendo ainda gratuidade quando a averbação se limitar ao CEP.8
O art. 440-AR assume papel central nessa sistemática ao impor ao oficial, no momento da qualificação de qualquer título ou documento, o dever de verificar se a matrícula respectiva está completa quanto à caracterização do imóvel (especialidade objetiva) e à qualificação do titular de domínio ou de outros direitos reais e pessoais (especialidade subjetiva).9 A congruência entre o título apresentado e o conteúdo da matrícula passa a ser condição inafastável para o ingresso do ato, sob pena de comprometer a segurança jurídica, a continuidade e a confiabilidade do acervo registral. Identificada a desconformidade, abre-se o campo de atuação da averbação de saneamento.
Quando o vício é meramente material e patente – por exemplo, um erro de digitação, inversão de número ou omissão evidente – e possa ser corrigido com base nas informações já constantes dos livros e arquivos da própria serventia, o provimento autoriza a retificação de ofício, sem necessidade de provocação do interessado ou apresentação de novo título. Essa solução prestigia os princípios da eficiência, da celeridade e da autotutela registral, conferindo ao oficial poder-dever de corrigir o próprio ato quando a correção decorre de forma inequívoca do acervo já existente.10
Nas hipóteses em que o saneamento não possa ser realizado de ofício, o registrador deve adotar providência formal: expedir nota devolutiva fundamentada, em até dez dias contados do protocolo, indicando de maneira clara quais averbações de saneamento são indispensáveis, quais documentos devem ser apresentados para a regularização da matrícula e quais emolumentos incidem. Somente após a realização dessas averbações saneadoras é que o registro ou a averbação originariamente pleiteada poderá ser praticado, reforçando a ideia de que a matrícula precisa estar tecnicamente íntegra para receber novos atos.11
O provimento 195/25 também confere relevante flexibilidade às fontes de informação aptas a subsidiar o saneamento. Permite-se, por exemplo, que dados constantes de escritura pública sejam aproveitados para averbações de saneamento, desde que a lei não imponha forma especial diversa para o ato a ser corrigido. Além disso, elementos de especialidade objetiva ou subjetiva não presentes no título ou no acervo registral podem ser supridos por documentos idôneos, como plantas, cadastros públicos, certidões administrativas e outros instrumentos oficiais. Quando a informação a complementar envolver manifestação de vontade ou dado pessoal (como endereço), admite-se que seja suprida por declaração dos próprios interessados, prestada sob sua responsabilidade.12
Noutro dizer, a normativa permite que o próprio acervo registral seja considerado para suprir as lacunas da matrícula, podendo, aqui, ser realizado de ofício pelo oficial. Mas, também permite aproveitar a fé pública notarial manifestada na escritura pública, de sorte que informações reais constantes poderão ser aproveitadas para suprir as deficiências da especialidade objetiva e subjetiva constante da matrícula, salvo as situações em que, por previsão legal, exija outro documento oficial.
Em determinadas situações, é possível inclusive corrigir o próprio título apresentado ao registro, mediante a juntada de documentos comprobatórios que completem as informações essenciais (como número de Registro Geral, qualificação correta das partes etc.), sem necessidade de lavratura de escritura pública de aditamento. Com isso, racionaliza-se o procedimento, evitam-se deslocamentos adicionais ao tabelionato, reduzem-se custos e tempo para o usuário e fortalece-se o papel do Registro de Imóveis como núcleo de organização, saneamento e confiabilidade das informações jurídicas relativas ao imóvel13. A averbação de saneamento, tal como delineada pelo provimento 195/25, converte-se, assim, em peça-chave da moderna governança do fólio real.
Em síntese, a evolução do Registro de Imóveis evidencia a resiliência do modelo matricial e sua capacidade de adaptação ao ambiente digital, agora reforçada pelo provimento CNJ 195, de 3/9/25. Ao ampliar a dogmática da matrícula com uma camada informacional mais densa, na qual se insere a própria averbação de saneamento, o provimento eleva o patamar de segurança jurídica, ainda que, em contrapartida, torne mais rigoroso o ingresso de títulos no fólio real, com o risco de manter parte da atividade econômica na informalidade. O equilíbrio entre proteção da confiança e funcionalidade do sistema registral dependerá, em última análise, da conjugação de três vetores: padronização técnica efetiva, governança de dados consistente e qualificação registral exercida com rigor, mas também com racionalidade e proporcionalidade.
1 Cf. AFRÂNIO DE CARVALHO, Registro de imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015 de 1973 com alterações da Lei n. 6.216 de 1975, Lei n. 8.009, de 29-03-1990 e Lei n. 8.935, de 18-11-1994, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1998, pp. 17-18.
2 V.F. KÜMPEL, C.M. FERRARI, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v.5, 2ª ed., São Paulo, YK, 2025.
3 Fólio, derivado do latim folium, refere-se a folha, ou seja, o papel compreendido em seus dois lados, ou considerado em suas duas páginas (frente e verso). O termo serve também para designar um livro numerado por folhas, não por páginas, sendo assim empregado principalmente na terminologia mercantil. (O. DE PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário Jurídico, 31ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2014).
4 A matrícula figura como o repositório de todas as informações cadastrais do imóvel, bem como de todas as posteriores transmutações jurídico-reais e alterações relevantes. Representa, assim, o “espelho” jurídico da realidade predial. S. JACOMINO, Registro e Cadastro – Uma interconexão necessária, in Observatório do Registro, 17-10-2000, disponível aqui.
5 Art. 440-AQ, incisos I a IV do Provimento nº 149/2023, incluído pelo Provimento nº 195/2025
6 V.F. KÜMPEL, C.M. FERRARI, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v.5, 2ª ed., São Paulo, YK, 2025.
7 Art. 440-AR do Provimento nº 149/2023, incluído pelo Provimento nº 195/2025
8 Art. 440-AR, parágrafo único, do Provimento nº 149/2023, incluído pelo Provimento nº 195/2025
9 De acordo com R.G. KOLLET, o modelo adotado pelo art. 440-AR, na medida em que condiciona a verificação da necessidade de saneamento da matrícula ou transcrição apenas ao momento da qualificação dos títulos apresentados a registro. Essa opção normativa transfere para o adquirente um risco que não deveria suportar: o cidadão compra o imóvel, celebra a escritura, paga integralmente o preço confiando em uma matrícula que goza de presunção de validade e completude, mas, posteriormente, é surpreendido com a exigência de providências complexas e onerosas – como a apresentação de memoriais descritivos, plantas e documentos técnicos – para sanear omissões ou imprecisões preexistentes. Em vez de funcionar como um verdadeiro “espelho jurídico” do imóvel, o fólio real passa a revelar, apenas a posteriori, sua incompletude, deslocando ao adquirente o custo financeiro e operacional da regularização, o que contraria a ideia de proteção da confiança legítima e de segurança jurídica que deveria orientar o sistema registral. A técnica mais adequada seria vincular à própria certidão de propriedade uma espécie de “relatório de conformidade registral”, indicando, de modo claro e prévio, as pendências de saneamento e os elementos ainda não adequadamente refletidos na matrícula, com a indicação dos documentos aptos a suprir as lacunas, permitindo que o interessado conheça, antes de contratar, o grau de completude e regularidade do registro sobre o qual pretende fundamentar a aquisição. (Reflexos do provimento CNJ 195/25 na atividade notarial, 26 set. 2025, disponível aqui.)
10 Art. 440-AR, §1º do Provimento nº 149/2023, incluído pelo Provimento nº 195/2025
11 Art. 440-AR, §2º do Provimento nº 149/2023, incluído pelo Provimento nº 195/2025
12 Art. 440-AR, §4º do Provimento nº 149/2023, incluído pelo Provimento nº 195/2025
13 Art. 440-AR, §5º do Provimento nº 149/2023, incluído pelo Provimento nº 195/2025
AFRÂNIO DE CARVALHO, Registro de imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015 de 1973 com alterações da Lei n. 6.216 de 1975, Lei n. 8.009, de 29-03-1990 e Lei n. 8.935, de 18-11-1994, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1998.
KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v.5, 2ª ed., São Paulo, YK, 2025.
PLÁCIDO E SILVA, Oscar Joseph, Vocabulário Jurídico, 31ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2014).
JACOMINO, Sérgio, Registro e Cadastro – Uma interconexão necessária, in Observatório do Registro, 17-10-2000, disponível aqui.
KOLLET, Ricardo Guimarães, Reflexos do provimento CNJ 195/25 na atividade notarial, 26 set. 2025, disponível aqui.
Fonte: Portal Migalhas



