Vitor Frederico Kümpel e Natália Sóller
O art. 176-A da Lei dos Registros Públicos, que dispõe sobre a abertura de matrícula para situações de aquisição originária da propriedade imobiliária, teve nova redação pela recente lei 14.620/23. Contudo, esse dispositivo já sofreu uma série de alterações ao longo dos últimos anos; observa-se, então, seu histórico, para que se passe à análise dos efeitos da atual redação em vigor.
A primeira inserção do dispositivo se deu pela Medida Provisória 700 de 2015, que perdeu a eficácia após o período de vigência da MP, que não foi convertida em lei1. Em 2021, uma nova redação foi efetivamente inserida na Lei dos Registros Públicos pela lei 14.2732 (que vigorava até recentemente).
Com a lei 14.620/23, parte do texto da MP 700 de 2015 foi retomado, passando o dispositivo a vigorar com a seguinte redação:
Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando: (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023)
I – atingir parte de imóvel objeto de registro anterior; ou (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)
II – atingir, total ou parcialmente, mais de um imóvel objeto de registro anterior. (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)
§ 1º A matrícula será aberta com base em planta e memorial descritivo do imóvel utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição. (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023)
§ 2º As matrículas atingidas deverão, conforme o caso, ser encerradas ou receber averbação dos respectivos desfalques, dispensada, para esse fim, a retificação do memorial descritivo da área remanescente. (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023)
§ 3º (VETADO). (Redação dada pela Lei nº 14.273, de 2021) Vigência
§ 4º Se a área adquirida em caráter originário for maior do que a constante do registro existente, a informação sobre a diferença apurada será averbada na matrícula aberta. (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023)
§ 4º-A. Eventuais divergências entre a descrição do imóvel constante do registro e aquela apresentada pelo requerente não obstarão o registro. (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)
§ 5º O disposto neste artigo aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro de: (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023)
I – ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021) Vigência
II – carta de adjudicação, em procedimento judicial de desapropriação; (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021) Vigência
III – escritura pública, termo ou contrato administrativo, em procedimento extrajudicial de desapropriação. (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021) Vigência
IV – aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)
V – sentença judicial de aquisição de imóvel, em procedimento expropriatório de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)
Pontua-se, inicialmente, o que é a aquisição originária da propriedade imobiliária.
Para Caio Mário da Silva Pereira, propriedade originária seria aquela que nunca esteve sob o domínio de alguém, ou seja, nunca teve titular anterior, transmitindo-se, portanto, sem qualquer relação causal, já que nunca houve nenhuma sobre aquela coisa3.
Contudo, crê-se que a melhor definição de aquisição originária se dá sob o critério de encadeamento das relações jurídicas entre os titulares do bem, e não sob o da existência de titulares prévios.
Assim, pelo critério da relação causal entre titulares, na aquisição originária, não há uma causalidade entre a titularidade anterior e a nova situação da coisa, ou seja, não houve uma relação volitiva entre o titular antecedente e o titular posterior que ensejou a transferência. Nesse caso, por inexistir vontade das partes na relação, a transmissão da propriedade ocorre de forma desvinculada da situação anterior da coisa, sendo desconsideradas as relações jurídicas anteriores à titularidade atual.
Diferentemente, na aquisição derivada, mantém-se a sucessão das relações jurídicas de transmissão da propriedade, existindo uma causalidade volitiva que gera a transferência do titular anterior para o posterior, como é o caso da compra e venda. Nesse caso, a propriedade é transmitida com todos os seus ônus, na medida em que a causalidade volitiva foi elemento essencial para essa mudança de titularidade4.
Como visto, o art. 176-A trata da primeira hipótese, de aquisição originária, em que inexiste o encadeamento das relações jurídicas para a transmissão da propriedade imóvel. O rol previsto no §5º, inclusive, elenca as situações de desapropriação, expropriação, usucapião e concessão de uso especial para fins de moradia, nas quais não há a causalidade para a aquisição.
É importante frisar, contudo, que esse rol é exemplificativo, na medida existem outras hipóteses de aquisição de propriedade originária, tais como a acessão e a carta de adjudicação ou arrematação em processo judicial de execução5, que não estão previstas nessa lei.
Para a adjudicação e arrematação, parece não haver impactos práticos o fato de tal situação não ter sido elencada no art. 176-A, na medida em que inexiste, a princípio, modificação de área do bem executado por dívida. Além disso, a aquisição por esse meio é um pouco mais complexa, pois, embora não se aplique o princípio da continuidade registral (e, por isso, um dos fundamentos para se tratar de uma forma de aquisição originária), permanece o princípio da especialidade objetiva e, ainda, pode haver determinação judicial para o não cancelamento de eventuais ônus já pendentes sobre o bem6.
A acessão, contudo, é uma forma de aquisição da propriedade por meio da aderência ou soma ao solo de um bem, ampliando o volume e o valor daquele7. Há, portanto, uma alteração de área do bem imóvel originário, podendo ser enquadrada na hipótese do inciso I do art. 176-A, pois, nesse caso, atinge parte de imóvel objeto de registro anterior (quando o imóvel que sofreu a acessão já tiver matrícula).
Parece, então, que o legislador se preocupou essencialmente com as formas de aquisição originárias que geram impacto na especialização objetiva do bem, e se observa rol do art. 176-A é exemplificativo, na medida em que existem outras formas de aquisição não derivada no Ordenamento.
Ainda, vale observar que, muito embora o artigo tenha elencado os títulos que adentrarão a serventia extrajudicial para a regularização da propriedade, não é o seu registro necessariamente que constitui a aquisição originária.
O art. 1.245 do Código Civil prevê que a propriedade de bem imóvel se transmite por ato entre vivos mediante registro do título translativo no Registro de Imóveis. Frise-se, contudo, que esse título “translativo” bem se adequa às situações em que há a causalidade na transmissão do domínio, que dependem, em regra, desse registro na serventia, que terá efeito constitutivo.
No entanto, as situações de aquisição originária tendem a se formar por outros meios, sem a existência de títulos translativos, e seu ingresso no Registros de Imóveis tem efeitos declaratórios. Observe-se a título de exemplo.
A usucapião é um caso clássico, na medida em que a aquisição se dá quando cumpridos todos os requisitos para a espécie adotada. A acessão se dá de forma natural, quando ocorre a incorporação do volume ao bem. Na desapropriação, a transferência ocorre com o pagamento pelo Poder Público.
Tanto é verdade, inclusive, que a mesma lei 14.620/23 transformou em direito real, previsto no rol do art. 1.225 do CC, os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão. Assim, os direitos de imissão provisória na posse nos casos de desapropriação apenas poderiam se constituir como direito real, bem como servir de título para a abertura de matrícula, se a propriedade do bem já estivesse efetivamente transmitida ao Poder Público.
A maior finalidade do art. 176-A, portanto, parece ser facilitar a regularização da propriedade adquirida por meio originário, que, muitas vezes não condiz com a área do bem inicialmente descrito na matrícula ou se dá sobre área ainda não constante no fólio registral8.
Na aquisição originária, naturalmente, é quase impossível se observar a especialidade objetiva para a área que foi adquirida, pois ela varia muito de acordo com cada caso concreto. Assim, o dispositivo facilita que o registrador promova a regularização, prevendo que não será obstado o registro mesmo que existam eventuais divergências entre a descrição do imóvel constante do registro e aquela apresentada pelo requerente.
Além disso, facilitou-se também a regularização de outros imóveis que tiverem sido afetados pela aquisição originária, permitindo-se que ele promova averbações com facilidade para adequar as áreas de outros bens que tenham sido desfalcados ou, até mesmo, tomados por completo pela nova aquisição.
Por fim, após a análise, apresenta-se o seguinte questionamento: além das hipóteses já previstas de aquisição originária da propriedade no Ordenamento, a lei 14.620/23 inovou ao definir novas situações para os imóveis adquiridos no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, no art. 10, §§ 2º e 3º?
Art. 10. Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, prioritariamente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). […]
§ 2º Na hipótese de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado no âmbito do Programa na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável.
§ 3º Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. […]
Explica-se: a Lei prevê transferência integral do imóvel adquirido por um casal, no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, para a mulher, no caso de dissolução de união estável, separação ou divórcio, ou para o homem, quando a ele for atribuída a guarda unilateral de eventuais filhos do casal (e, ainda, uma possibilidade de reversão para a troca da guarda).
Assim, independentemente do regime de bens, quando ocorrer a dissolução da união estável, divórcio ou separação, não haverá a partilha do imóvel proporcional entre os ex-cônjuges (na forma prevista no Código Civil), mas sim a transferência integral pelo critério de gênero ou de atribuição de guarda.
Aplica-se, portanto, uma determinação do Estado em detrimento das regras tradicionais da comunhão e do regime de bens. Parece, assim, inexistir a relação de causalidade volitiva para essa transferência da fração ideal do imóvel entre os cônjuges, na medida em que a transmissão ocorre por determinação legal.
Não é possível, pelo critério adotado, aferir relação volitiva entre os cônjuges para essa transferência, visto que o próprio regime de bens – que seria uma escolha feita pelo casal – não é respeitado para a situação de aquisição no Programa Minha Casa Minha Vida; em outros termos, não se pode verificar uma vontade nem pela escolha do regime de bens, cujas regras não serão aplicadas.
Trata-se de uma aquisição de propriedade por imposição legal sob o critério de gênero ou de guarda dos filhos.
Sejam felizes!
1 Art. 2º A Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido se não houver ou quando:
I – atingir parte de imóvel objeto de registro anterior; ou
II – atingir, total ou parcialmente, mais de um imóvel objeto de registro anterior.
§ 1º A matrícula será aberta com base em planta e memorial descritivo do imóvel utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição.
§ 2º As matrículas atingidas deverão, conforme o caso, ser encerradas ou receber averbação dos respectivos desfalques, dispensada, para este fim, a retificação do memorial descritivo da área remanescente.
Art. 176-B. O disposto no art. 176-A aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro:
I – de ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação;
II – de carta de adjudicação em procedimento judicial de desapropriação;
III – de escritura pública, termo ou contrato administrativo em procedimento extrajudicial de desapropriação;
IV – de aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia; e
V – de sentença judicial de aquisição de imóvel em procedimento expropriatório de que tratam os § 4º e § 5º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil. Acesso disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/124368 [13-08-2023]
2 Art. 176-A. O registro de aquisição originária ou de desapropriação amigável ou judicial ocasionará a abertura de matrícula, se não houver, relativa ao imóvel adquirido ou quando atingir, total ou parcialmente, um ou mais imóveis objeto de registro anterior.
§ 1º A matrícula será aberta com base em planta e memorial utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição, os quais assegurarão a descrição e a caracterização objetiva do imóvel e as benfeitorias, nos termos do art. 176 desta Lei.
§ 2º As matrículas atingidas serão encerradas ou receberão averbação dos desfalques, caso necessário, dispensada a retificação da planta e do memorial descritivo da área remanescente.
§ 4º Na hipótese de a área adquirida em caráter originário ser maior do que a área constante do registro existente, a informação sobre a diferença apurada será averbada na matrícula aberta.
3 PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. IV. p. 115.
4 KÜMPEL, Vitor Frederico – FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. 1. ed. São Paulo: YK, 2020. vol. 5. Tomo 1. p. 156-157.
5 KÜMPEL, Vitor Frederico – FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 1. p. 923; Tomo 2. p. 2038.
6 KÜMPEL, Vitor Frederico – FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 2. p. 2038.
7 KÜMPEL, Vitor Frederico – FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 1. p. 923.
8 Nesse sentido: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Novo Direito Real com a lei 14.620/23: uma atecnia utilitarista diante da imissão provisória na posse. In Migalhas, 17-07-2023, disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/390037/novo-direito-real-com-a-lei-14-620-23 {13-008-2023]
*texto retirado do Portal Migalhas.