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Análise crítica da Medida Provisória 1.162/23 – Parte II – Vênia conjugal.

Vitor Frederico Kümpel e Fernando Keutenedjian Mady.

A Medida Provisória 1.162/2023, foi publicada em 14 de fevereiro de 2023, com o objetivo de restabelecer o conceito do Programa Minha Casa, Minha Vida e modificar outras legislações correlatas à implementação da política habitacional, como aquelas que tratam dos fundos financiadores – leis 8.677, de 1993, e 10.188, de 2001 -, bem como aquelas que cuidam de modernizar a formalização e o registro dos atos que envolvem o crédito imobiliário – leis 6.015, de 1973, 9.514, de 1997, 14.063 de 2020, e 14.382, de 2022 -, e, por fim, a medida “propõe revogar o programa antecessor instituído pela lei 14.118, de 2021, que poucos efeitos promoveu na direção de atender famílias de mais baixa renda”.

Uma das consideráveis mudanças ofertadas pela Medida Provisória nº 1.162/2023 foi o artigo 10, caput, e §§ 2º e 3º,1 que dispensa a vênia entre os cônjuges, ou entre os companheiros, na contratação de financiamentos para a aquisição ou melhoria de imóveis para moradia. Veja-se:

“Art. 10. Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, preferencialmente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos art. 1.647, art. 1.648 e art. 1.649 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.”

 No Direito Romano, caso o casamento não seguisse a conuentio in manum, o patrimônio dos cônjuges deveriam ser distintos, havendo assim, uma independência entre eles. Ressalte-se que também, na época, vigorava o denominado matrimonia cum manu, que com base no princípio da absorção, o patrimônio que a mulher tinha ao casar era incorporado ao patrimônio do pater famílias. Por sua vez, no casamento sine manu, os bens trazidos pela mulher continuavam sob sua administração e domínio.2

As Ordenações Afonsina, Manuelina e Filipinas previam o casamento pela comunhão universal total de bens, e permitiam aos nubentes a livre estipulação do regime de bens. Com a entrada em vigor do Código Civil de 1916, estabeleceu-se quatro regime de bens, quais sejam: comunhão universal, comunhão parcial, separação de bens e o dotal. Por sua vez, sob a égide da Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002 suprimiu o regime dotal, e manteve a comunhão universal, parcial e separação, inovando com a participação final nos aquestos.

Quanto à disponibilidade do patrimônio e sua administração, o Código Civil de 2002 separa os atos em que cada cônjuge pode realizar livremente, sem que haja necessidade de autorização do outro (art. 1.642 do CC/2002) e aqueles em que o cônjuge não pode praticar sem o consentimento do outro (art. 1.647 do CC/2002).

Nesse sentido, com o intuito de proteger o patrimônio familiar, a lei confere maior proteção aos casos de considerável valor econômico, exigindo, portanto, a anuência do cônjuge para a prática de determinados atos. Tal anuência é denominada de outorga uxória ou marital, que se caracteriza como uma forma de controle dos atos do cônjuge, nos regimes de comunhão, para proteção dos frutos comuns e benfeitorias. Cumpre notar que a vênia conjugal não existia em Roma e nem na Idade Média, sendo observada, pela primeira vez, nas Ordenações Filipinas.

Dessa forma, a outorga ou vênia conjugal é apresentada como uma maneira de proteger a esfera patrimonial do cônjuge não participante de ato jurídico, além de desempenhar um papel voltado a evitar desgastes patrimoniais que comprometa a seara das pessoas que constituem a entidade familiar.3 Trata de instituto restritivo do poder de administração do casal, imposto por lei para a prática de certos atos. Sem a autorização do cônjuge ou companheiro, não estará legitimado o outro consorte a efetivar certos atos ou negócios jurídicos, ressalvado o regime da separação convencional, ou suprimento da vênia pelo autoridade judicial (CC, art. 1.647 e 1.648)

Conforme mencionado, o artigo 10 da Medida Provisória 1.162/2023 dispensa a vênia conjugal na contratação de financiamentos para a aquisição ou melhoria de imóveis para moradia. Coordenadamente, a mulher é preferente para formalização do contrato e o registro no fólio real, no âmbito dos programas sociais definidos na lei 14.118/2021, art. 13, e Medida Provisória 1.162/2023 art. 10.

Cabe o exame da função da vênia conjugal no casamento e na união estável para se verificar a vulnerabilidade criada para o patrimônio da família. Se a outorga conjugal, ou a autorização na união estável, visa à proteção do patrimônio familiar, não está arrimada à norma constitucional afastá-la de contratos relevantes, os quais versem sobre imóveis.4

Observe-se uma confusão do legislador entre o instituto da vênia conjugal e da aquisição conjunta, na medida em que a situação da vênia matrimonial está ligada ao fato de uma das partes ser proprietária e a outra apenas consentir nas transmissões ou onerações feitas pelo único titular. Portanto, afastar a aplicação dos artigos 1.647 a 1.649 nada tem a ver com a copropriedade, tendo relação direta apenas com a propriedade exclusiva de um e a autorização de outro para alienação ou oneração. Frisa-se que a vênia conjugal é necessária para os casos de alienação e não para a aquisição jurídico-real de bens imóveis.

As restrições impostas nos artigos 1.647 a 1.649 do Código Civil cabem nos regimes em que há patrimônio comum do casal, quais sejam, o regime da comunhão universal e da comunhão parcial.

Em relação ao regime de separação legal ou obrigatória de bens, os aquestos se comunicarão, justificando a exigência de outorga uxória, tendo em vista a adoção da Súmula nº 377 do STF, em que se comunicam os bens adquiridos na constância do casamento. Já na separação convencional, em que o intuito é exatamente a separação do patrimônio do casal, de forma que, desde o primeiro momento, a aquisição do imóvel no âmbito do Programa é realizada em nome apenas de um deles ou em condomínio por ambos, não é razoável que o patrimônio se transfira para um deles além das proporções anteriormente estabelecidas. Até mesmo na comunhão universal ou parcial, a restrição à outorga conjugal se mostra um problema, na medida em que implica em enriquecimento sem causa, quebrando a expectativa de divisão de patrimônio com o divórcio.

Ainda, o § 2º do artigo 10 da Medida Provisória 1.162/2023, prevê a hipótese de o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado no âmbito do Programa na constância do casamento ou da união estável, ser registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, nos casos de dissolução da união estável, separação ou divórcio. Assim, se pressupõe previamente que o casal não tem capacidade ou maturidade para exercer o seu poder conjunto de decisão, o que fere o livre planejamento e vedação a interferência do Estado ou de terceiros na comunhão de vida instituída pela família.5 Não há como predeterminar qual dos cônjuges ou companheiros terá renda ou patrimônio. De igual forma, não é possível pressupor se o casal será homoafetivo ou não.

Posto isso, apesar da boa intenção do legislador ao promover uma maior proteção à mulher, criou uma nova forma de aquisição da propriedade com base no gênero6, e descumpriu as regras do Código Civil acerca do regime de bens, confundindo os institutos da vênia conjugal com a copropriedade.

Sugere-se, para uma interpretação mais adequada, que os contratos e registros sejam efetivados em nome da mulher (autopercepção). No caso de casal homossexual (duas mulheres), automaticamente se instituiria um condomínio entre elas. Ainda, se o homem for comprovadamente o guardião, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou, no caso de ambos anuírem expressamente que contribuíram para a aquisição do bem, o registro seria ser efetivado na titularidade dos dois, em condomínio. Portanto, não há qualquer relação com a vênia conjugal, a não ser em caso de alienação do bem.

O próximo artigo da coluna seguirá com nova análise sobre a Medida Provisória 1.162/2023.

Sejam felizes!


1 Ressalte-se que o artigo 14 da lei 14.118/2021 previa parte dessa redação em seu artigo 14: “Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado pelo Programa Casa Verde e Amarela na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS. (Revogado pela Medida Provisória nº 1.162, de 2023) Parágrafo único. Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. (Revogado pela Medida Provisória 1.162, de 2023)

2 Cf. ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997 e NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v. 5.

3 MATOS, Ana Carla Harmatiuk, PEREIRA, Jacqueline Lopes. Outorga conjugal e aval no casamento. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 18, p. 103-123, out./dez. 2018.

4 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 17ª ed., 2ª tiragem, 2014, p. 1275.

5 CF, art. 226, § 7º, c.c. CC, art. 1.513 e 1.539, caput

6 KÜMPEL, Vitor Frederico, SÓLLER, Natália. Análise crítica da Medida Provisória 1.162/23 – Parte I, Migalhas. 28 mar. 2023, disponível aqui.


*texto retirado do Portal Migalhas.