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A certificação eletrônica da união estável: procedimento, efeitos e responsabilidade do registrador civil pela data incorreta

Vitor Frederico Kümpel e Victor Volpe Fogolin

A comprovação do período de início e término da união estável é de extrema importância tanto para os companheiros envolvidos quanto para aqueles que têm interesses nas implicações legais desse relacionamento. Isso engloba consequências tanto de natureza patrimonial, como os direitos sucessórios e o regime de bens, quanto de natureza não patrimonial, como as responsabilidades entre os parceiros.

À medida que a equiparação do regime sucessório entre cônjuges e companheiros1 ganha destaque, a união estável, embora seja uma relação informal e reconhecida como um ato-fato jurídico, enfrenta uma preocupação crescente na sociedade em relação à sua comprovação. Nesse contexto, é comum que a data de início da união esteja registrada em uma escritura pública declaratória, muitas vezes anterior à data de emissão do documento.

Os efeitos decorrentes dessa declaração geralmente são aplicados apenas entre os próprios companheiros, ou seja, eles têm relevância restrita às partes envolvidas. Para que esses efeitos tenham validade em relação a terceiros e tenham consequências legais para eles, é essencial registrar a união estável no Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN), conforme estabelecido pelo artigo 1º, §1º, do Provimento 37 do CNJ. No entanto, ressalte-se que de acordo com a redação original do artigo 5º do Provimento 37, mesmo após o registro, os efeitos da escritura permaneceriam limitados aos companheiros, a menos que terceiros tivessem participado do processo.

Antes da promulgação da lei 14.382/22 e da implementação do Provimento 141 do CNJ, o Provimento 37 do CNJ tinha uma abordagem restritiva, mencionando que o reconhecimento do período de vigência da união estável só poderia ser obtido por meio de uma decisão judicial2. De maneira similar, nas situações em que a união estável era convertida em casamento, de acordo com as normativas estaduais, não havia a inclusão da data de início ou da duração da união estável nos registros públicos, a menos que houvesse um reconhecimento por parte do sistema judicial3.

Assim, na sistemática anterior, a única forma de aferição da data de início da união estável, de modo a levá-la ao registro e produzir efeitos perante terceiros, era por meio de ação judicial, em rito de jurisdição voluntária. A data de início declarada na escritura de união estável não era oponível a terceiros a menos que estes anuíssem.

Isso tinha implicações significativas, como por exemplo, a ausência da data de início da união estável no registro implicaria que um bem comum pertencente a ambos os companheiros, mas registrado apenas em nome de um deles e adquirido antes do registro no Livro E, seria considerado como propriedade individual pelo credor, pois não produziria efeitos legais em relação a terceiros. Além disso, surgia uma complexidade na divisão dos bens no contexto do regime sucessório, uma vez que não se tinha certeza se a companheira deveria ser tratada como meeira, com direito a 50% do bem, ou como herdeira, com uma parcela igual à dos outros descendentes, conforme estabelecido pelo Código Civil..

Nesse contexto, na esteira da desjudicialização e do aumento das atribuições do Ofício da Cidadania, a lei 14.382/22 estabeleceu que “não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou o período de duração desta, salvo no caso de prévio procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil.”4.

Regulando esse dispositivo, o Provimento 141 do CNJ, ao alterar o Provimento 37, estabeleceu que o registro de reconhecimento ou de dissolução da união estável somente poderá indicar as datas de início ou de fim da união estável se estas constarem de um dos seguintes meios: a) decisão judicial; b) procedimento de certificação; c) escritura pública de reconhecimento ou dissolução, em que a data de início ou fim corresponda à data de lavratura do instrumento, desde que declarado pelos companheiros.

No entanto, a última opção pode ser vista como contraditória, uma vez que implica que os companheiros devem formalizar a escritura pública de reconhecimento no mesmo dia em que decidem estabelecer a união estável, o que vai de encontro à ideia de que a união estável é um relacionamento contínuo e duradouro.

Em virtude dessas mudanças, o procedimento de certificação eletrônica emergiu como a forma mais eficaz de estabelecer a data de início da união estável para fins de registro. Portanto, a certificação eletrônica é um procedimento opcional conduzido pelo oficial de registro civil que tem como objetivo comprovar a data de início e, se aplicável, a data de término da união estável, permitindo que essas informações sejam inseridas no registro no Livro E e tenham validade perante terceiros. 

Procedimento de certificação

O processo de certificação eletrônica se inicia mediante pedido expresso dos companheiros, que desejam que as datas de início ou término da união estável sejam registradas, seja por meio de comunicação eletrônica ou em formato escrito. No momento em que os companheiros fazem essa solicitação ao oficial de registro civil, ocorre a rogação e o início do procedimento, de forma que eles receberão orientações sobre como o processo de certificação ocorrerá5.

Naturalmente, a competência pela condução do procedimento de certificação será atribuída ao 1º Registro Civil de Pessoas Naturais no local de residência dos companheiros ou, em caso de dissolução da união estável, ao último local de residência onde foi solicitado o registro da união no Livro E.

Não existem restrições quanto à possibilidade de submeter o pedido por intermédio de um procurador, desde que esse representante esteja devidamente autorizado por meio de um instrumento legal, podendo ser público ou particular com firma reconhecida, com poderes específicos. Além disso, não há impedimento para que um único procurador atue em nome de ambos os conviventes. Importante mencionar que essa prática é aceita para situações de separação e divórcio consensuais extrajudiciais, do que não caberia maior rigidez quanto à união estável.

Todavia, embora o requerimento possa ser apresentado por procurador, mostra-se necessária a entrevista pessoal dos companheiros pelo registrador, por expressa disposição legal, sendo esta reduzida a termo e assinado pelo registrador e entrevistados.6

Com base no princípio da liberdade de prova, o Provimento 141 estipula que todos os meios de prova reconhecidos pelo direito podem ser empregados no processo de certificação. Nesse contexto, é aplicável o artigo 369 do Código de Processo Civil, que confere às partes o direito de utilizar todos os meios legais e moralmente aceitáveis, mesmo que não sejam comuns, com o objetivo de influenciar a convicção do oficial de registro.

No decorrer do procedimento, o oficial de registro civil deve verificar se os requisitos estabelecidos pelo artigo 1723 do Código Civil estão presentes, o que inclui a convivência pública, contínua e duradoura com o propósito de constituir uma família, sem impedimentos matrimoniais.

Como importante referência de standart probatório, sugere-se os meios exemplificados para reconhecimento da paternidade socioafetiva do Prov. 63/CNJ7: inscrição em plano de saúde ou em órgão de previdência; registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; inscrição como dependente em entidades associativas; fotografias em celebrações relevantes; declaração de testemunhas com firma reconhecida, além de outros, como conta corrente conjunta, contratos de aluguel e boletos em comum.

Nesse contexto, o registrador civil se fundará no livre convencimento motivado, decidindo fundamentadamente ou, em caso de suspeita de fraude, podendo exigir provas adicionais ou negar o pedido. Caso indeferido o pedido de certificação, mostra-se cabível a suscitação de dúvida em 15 dias da ciência (arts. 198 e 296 da LRP).

Destacando a sua natureza opcional, o processo de certificação eletrônica não será necessário quando outros documentos já comprovarem a data (seja através de uma decisão judicial ou uma escritura pública que ateste o início simultâneo da união estável)8. Com relação ao valor dos emolumentos, inexistindo lei estadual, será cobrado 50% do valor previsto para o rito de habilitação de casamento9.

Efeitos da certificação 

O entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabelece que a escolha do regime de bens para a união estável por meio de um contrato escrito produz efeitos a partir do momento da celebração (efetividade ex nunc), não sendo válidas as cláusulas que buscam retroagir os efeitos patrimoniais do acordo sem a devida autorização judicial, conforme estipulado no artigo 1.639, §2º, do Código Civil de 200210.

Embora a certificação da união estável comprove a data de início e de fim, deve-se prestar especial atenção sobre seus efeitos: em proteção a terceiros de boa-fé, a certificação não afetará negócios já realizados, já que, por não haver registro anterior, não é oponível a terceiros; contudo, para os negócios futuros, realizados após a certificação, serão consideradas situações jurídicas anteriores, desde a data de início e fim fixadas.

Por exemplo, considere uma certificação eletrônica que tenha fixado o início da união estável como ocorrido há seis meses. Uma venda de um bem realizada dois meses antes da certificação não poderá ser anulada devido à falta de consentimento de um dos companheiros, uma vez que, na época da transação, a data de início não era oponível a terceiros, garantindo a proteção de terceiros de boa-fé. No entanto, se a venda do bem ocorrer após a certificação e houver comunicabilidade entre os companheiros, o bem será considerado como propriedade comum, exigindo o consentimento do outro companheiro, mesmo que tenha sido adquirido anteriormente.

No que diz respeito à possível necessidade de consentimento do companheiro, o STJ estabeleceu que “A alienação sem anuência de companheiro é válida se não há publicidade da união estável”11.

Portanto, a certificação não afeta transações já concluídas, mas impõe a obrigação de considerar as datas de início e término para transações futuras, estabelecendo-as com uma presunção relativa de veracidade. Isso também implica, perante terceiros, que a comunicabilidade ou a exigência de consentimento do companheiro se aplique aos bens adquiridos antes do procedimento.

Ademais, sobre os efeitos da certificação da união estável na conversão em casamento, destaca-se o Enunciado 74 da ARPEN-SP: “A prévia certificação eletrônica constante do art. 70-A, § 6º, lei 6.015/73 produzirá efeitos, quanto à conversão em casamento, a partir da data em que declarada perante o oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, ainda que a união estável tenha sido iniciada, pelos companheiros, em data anterior”. 

Responsabilidade do registrador civil pela certificação de data incorreta

O registrador civil atua com autonomia e independência técnica em sua qualificação, baseando-se nos meios de prova aceitos e em sua convicção motivada. A respeito, bem aponta Walter Ceneviva: “Para que se possa entender como autônoma a qualificação registral, é necessário compreender que ela não é simplesmente a aplicação de normas preestabelecidas para o preenchimento de fichas cadastrais, mas sim um juízo técnico que demanda do oficial de registro uma série de diligências e análises.”12.

Além disso, o processo de certificação estabelece as datas de início e término da união estável com uma presunção relativa de veracidade, graças à fé pública associada a ele, mas sem criar coisa julgada, permitindo, assim, a apresentação de evidências em sentido contrário perante o Judiciário. A fé pública não é absoluta, mas relativa, sujeitando-se a prova em contrário, em casos de dúvida ou impugnação dos atos emanados pela Administração13.

Nesse contexto, em geral, o registrador civil não é responsabilizado pela certificação incorreta de datas de início ou término, desde que sua decisão seja fundamentada e baseada nas informações fornecidas pelas partes envolvidas. Qualquer responsabilização indevida seria prejudicial à sua independência técnica e poderia ser vista como um erro na interpretação das normas (crime de hermenêutica), sem fundamento jurídico.

Em casos excepcionais, nos quais ocorram erros evidentes, como equívocos materiais, fraudes ou decisões que claramente contrariem as evidências apresentadas, o registrador civil poderá ser responsabilizado subjetivamente na esfera civil, desde que se prove a existência de dolo ou culpa (conforme previsto no artigo 22 da lei 8.935/94), sem prejuízo de sanções administrativas ou penais.

Dentro do procedimento de certificação, em princípio, o registrador atua de maneira similar a um juiz, tomando decisões fundamentadas com base em meios de prova legalmente aceitos. Portanto, ele não deve ser responsabilizado por sua interpretação jurídica e probatória a respeito do termo inicial e final da união estável, visto que a fé pública possui uma força relativa, permitindo, ainda assim, uma revisão por meio de um processo judicial subsequente.

Sejam Felizes!


1 REs n° 646721 e 878694 – STF.

2 Art. 7°, §2° do Provimento 37 do CNJ: “Contendo a sentença em que declarada a dissolução da união estável a menção ao período em que foi mantida, deverá ser promovido o registro da referida união estável e, na sequência, a averbação de sua dissolução”.

3 É o caso das Normas de Serviço de SP, Cap. XVII, item 87.5. Não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou período de duração desta, salvo nas hipóteses em que houver reconhecimento judicial dessa data ou período.

4 Art. 70-A da Lei de Registros Públicos.

5 Art. 9-F, caput, Provimento n° 37 do CNJ.

6 Art. 9-F, §3°, Provimento n° 37 do CNJ.

7 Art. 10-A, §2°, Provimento n° 63 do CNJ.

8 Art. 9-F, §9°, Provimento n° 37 do CNJ.

9 Art. 1°-A, §6°, II, Provimento n° 37 do CNJ.

10 STJ. 4ª Turma. AREsp 1.631.112-MT, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 26/10/2021 (Info 715).

11 STJ. 3ª Turma. REsp 1424275-MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2014 (Info 554).

12 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 21ª edição, 2012.

13 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32ª edição, 2018.


*texto retirado do Portal Migalhas.