Em julgamento realizado nesta terça-feira (2), a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os agentes policiais, caso precisem entrar em uma residência para investigar a ocorrência de crime e não tenham mandado judicial, devem registrar a autorização do morador em vídeo e áudio, como forma de não deixar dúvidas sobre o seu consentimento. A permissão para o ingresso dos policiais no imóvel também deve ser registrada, sempre que possível, por escrito.
O colegiado estabeleceu o prazo de um ano para o aparelhamento das polícias, o treinamento dos agentes e demais providências necessárias para evitar futuras situações de ilicitude que possam, entre outros efeitos, resultar em responsabilização administrativa, civil e penal dos policiais, além da anulação das provas colhidas nas investigações.
Seguindo o voto do relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a turma concedeu habeas corpus para anular prova obtida durante invasão policial não autorizada em uma casa e absolver um homem condenado por tráfico de drogas. Os policiais alegaram que tiveram autorização do morador para ingressar na casa – onde encontraram cerca de cem gramas de maconha –, mas o acusado afirmou que os agentes forçaram a entrada e que ele não teve como se opor.
“A situação versada neste e em inúmeros outros processos que aportam nesta corte superior diz respeito à própria noção de civilidade e ao significado concreto do que se entende por Estado Democrático de Direito, que não pode coonestar, para sua legítima existência, práticas abusivas contra parcelas da população que, por sua topografia e status social, costumam ficar mais suscetíveis ao braço ostensivo e armado das forças de segurança”, afirmou o relator.
Segundo ele, deve ser vista com muita reserva a afirmação usual de que o morador concordou livremente com o ingresso dos policiais, principalmente quando a diligência não é acompanhada de documentação capaz de afastar dúvidas sobre sua legalidade.
Conclusões
Ao firmar o precedente, a Sexta Turma estabeleceu cinco teses centrais:
1) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.
2) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa, objetiva e concretamente, inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.
3) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.
4) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo, e preservada tal prova enquanto durar o processo.
5) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal dos agentes públicos que tenham realizado a diligência.
Direito fundamental
A posição defendida pelo ministro Rogerio Schietti Cruz – no sentido de que a gravação audiovisual e o registro escrito da autorização do morador, além de confirmarem a licitude da prova obtida, trarão proteção tanto para o residente quanto para os policiais – teve como base precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e de cortes estrangeiras, especialmente dos Estados Unidos, da França, Espanha e de Portugal.
O ministro lembrou que a Constituição estabeleceu como direito fundamental a inviolabilidade do domicílio, ao mesmo tempo em que previu como únicas hipóteses para o ingresso da polícia (ou de qualquer outra pessoa) o consentimento do morador, as situações de flagrante delito ou desastre, a necessidade de prestar socorro e a ordem judicial – neste caso, apenas durante o dia.
Segundo o relator, o STF, ao julgar o RE 603.616, decidiu que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em razões concretas, devidamente justificadas posteriormente, que indiquem que dentro da casa ocorria situação de flagrante delito.
Discricionariedade
No contexto brasileiro, Schietti destacou que a maior parte das prisões por tráfico de drogas não decorre de investigações, mas de flagrantes durante o policiamento ostensivo.
Entretanto – observou –, a situação de flagrância capaz de permitir que seja afastado o direito do morador à intimidade e à inviolabilidade do domicílio deve ser comprovada por motivos concretos e urgentes. O ministro lembrou que, se o próprio juiz só pode determinar uma busca e apreensão em decisão fundamentada, não seria razoável permitir que um servidor da segurança pública tivesse total discricionariedade para, a partir de uma avaliação subjetiva, entrar de maneira forçada na residência de alguém.
“Aliás, releva destacar que os tribunais, em regra, tomam conhecimento dessas ações policiais apenas quando delas resulta a prisão do suspeito, ou seja, quando atingem o fim a que visavam. O que dizer, então, das incontáveis situações em que agentes do Estado ingressam em domicílio, muitas vezes durante a noite ou a madrugada – com tudo o que isso representa para os moradores –, e nada encontram?”, questionou o ministro.
Estigmatização
Rogerio Schietti citou posições doutrinárias segundo as quais o flagrante que deve autorizar o ingresso policial, sem mandado judicial, é o que resulta de verdadeira emergência, como nos casos de sequestro, em que há perigo à vida da vítima, mas não na hipótese de crimes permanentes como a simples posse de entorpecentes ou de armas ilegais.
Ele também mencionou pesquisas que relacionam as desigualdades sociais e raciais à estigmatização de grupos e tipos marginalizados como potenciais criminosos, o que faz com que as abordagens policiais se voltem frequentemente contra pessoas que já são objeto de exclusão. De acordo com o ministro, é preciso que o Brasil freie as violações abusivas de lares da população carente.
“Chega a ser – para dizer o mínimo – ingenuidade acreditar que uma pessoa abordada por dois ou três policiais militares, armados, nem sempre cordatos na abordagem, livremente concorde, sobretudo de noite ou de madrugada, em franquear àqueles a sua residência”, comentou.
Bons exemplos
O ministro lembrou que já existem corporações policiais no Brasil – a exemplo das polícias militares de São Paulo e de Santa Catarina – que equiparam seus agentes com câmeras acopladas aos uniformes ou capacetes, não só para a salvaguarda dos cidadãos, mas para a própria proteção dos agentes.
Essas iniciativas, segundo ele, devem ser seguidas por todos os governos estaduais, pois a medida – entre outros benefícios – permitirá que se avalie se houve justa causa para o ingresso na residência e se o eventual consentimento do morador foi realmente livre. Até que tal providência seja ultimada em todo o país – acrescentou o relator –, nada impede que os policiais usem as câmeras de celulares para fazer o registro.
A Sexta Turma determinou a comunicação do julgamento aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, bem como ao ministro da Justiça e Segurança Pública, aos governadores dos estados e do Distrito Federal, e às suas respectivas corporações policiais. Também serão informados o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Conselho Nacional de Direitos Humanos.
Fonte: STJ