Fernando Keutenedjian Mady
Homenagem aos Professores Celso Antônio Bandeira de Mello e Weida Zancaner
A premissa adotada no presente texto é a de que o direito registral é um ramo do direito público, instrumental ao direito privado. Portanto, em sua forma, a matéria adota um regime jurídico administrativo, embora seja especial, devido às peculiaridades do sistema delineado mormente pela Lei de Registro Públicos. Em contrapartida, em sua substância, concentra-se em um regime jurídico privado de atos ou fatos jurídicos constitutivos, translativos, modificativos e extintivos de direitos reais e da propriedade imobiliária.
Almeja-se, “en passant”, examinar os reflexos do regime jurídico administrativo, em específico, aos atos que levam à extinção de inscrições no fólio real. Em especial, aqueles cujo vício repousa na causa antecedente do negócio e, por consequência, suprimem situações jurídicas geradoras no Registro de Imóveis.
O cancelamento, nos registros públicos, é ato administrativo, formalizado por meio de averbação na matrícula, cujos efeitos são extintivos de um ato anterior e, em algumas situações, restaurador de situações jurídicas suprimidas ou modificadas pelo ato cancelado.
Trata-se de espécie de ato de averbação, gênero de registro “lato sensu”, prevista nos registros de imóveis, na Lei nº 6.015, de 31.12.1973, arts. 248 a 259 e no Código Civil, no art. 1.245, caput e parágrafos, 1º e 2º.
Caracteriza-se pela definitividade, pois não se sujeita a prazo, caducidade ou condição – ato puro e simples – acessoriedade, pois já pressupõe ato anterior, objeto de cancelamento.
É causa de ineficácia, porquanto, na matrícula, suprime inscrição anterior, malgrado não apague os efeitos jurídicos de seu objeto. Daí a importância, então, de se manter sua publicidade no histórico do imóvel.
Classifica-se em total ou parcial (art. 249, “in limine”, LRP). Parcial, quando reduz quantitativamente o direito inscrito – art. 1.488, CC, exceção ao princípio da individualidade das hipotecas – ou qualitativa, como cancelamento de cláusulas restritivas de individualidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade, apostos em negócios gratuitos.
Outrossim, identifica-se, quanto à origem, em judicial, voluntário ou “ex officio”; quanto à sua aplicabilidade em atos de registro, averbação e matrícula (LRP , arts. 233, inc. I, e 244); e se consubstancia por averbação, assinada pelo oficial, seu substituto legal ou escrevente autorizado, e declarará o motivo que o determinou, bem como o título em virtude do qual foi feito.
Até que ponto a nulidade de pleno direito de atos de registro lato sensu deve ser pronunciada, a fim de invalidá-los com efeito retroativo?
A nulidade de pleno direito é vício insanável, causa precedente à sua perfeição (CC, arts. 166, 168 e 169). Isto porque o princípio da legalidade e autotutela, os quais são intrínsecos ao regime jurídico-administrativo (Súmula nº 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal),[1] determinam a retirada dos atos nulos de pleno direito, quando presente mácula em sua constituição, a ponto de ferir a ordem legal, independentemente de exame dos atos anteriores.[2]
O entendimento da abalizada doutrina sobre tema é que “As nulidades absolutas caracterizam-se pela natureza insanável do vício, contido no ato ou negócio jurídico. No direito registral, nulidades desta natureza são reconhecidos por meio de uma demanda direta (art. 214, caput, da Lei n. 6.015/1973), inclusive independentemente de provocação dos interessados. Podem, assim, ser matérias de objeção , reconhecidas de ofício pelo juiz”[3].
Assim, a nulidade de pleno direito desconstitui os efeitos emanados do ato viciado, com eficácia retroativa à data do ato. A situação jurídica retornará até o statu quo ante, como se jamais houvesse sido praticado atos.
O limite do ato de cancelamento do registro, por absoluta invalidade, declarada por autoridade jurisdicional, encontra limite estabelecido na própria Lei de Registros Públicos, isto é, deve-se desconstituir atos até que atinjam o interesse de terceiros (LRP, art. 214, §§ 1º e 5º).
Protocolado o pedido de cancelamento de inscrições, o oficial de registro deve aferir as legítimas expectativas despertadas por atos realizados no exercício de funções públicas, desempenhadas pelo Oficial Registrador, à época em que lançados nas matrículas os registros. Portanto, o cancelamento e bloqueio de transcrição e matrícula que lhe é filiada são inadmissíveis em prejuízo de terceiro de boa-fé, acobertado pelo lapso temporal da prescrição aquisitiva.
Miguel Reale explica que “ a decretação da nulidade é feita tardiamente, quando a inércia da Administração já permitiu se constituíssem situações de fato revestidas de forte aparência de legalidade, a ponto de fazer gerar nos espíritos a convicção de sua legitimidade, seria deveras absurdo que., a pretexto da eminência do Estado, se concedesse às autoridades um poder-dever indefinido de autotutela. Desde o famoso affaire Cachet, é esta a orientação dominante no Direito francês, com os aplausos de Maurice Hauriou, que bem soube pôr em realce os perigos que adviriam para a segurança das relações sociais se houvesse possibilidade de indefinida revisão dos atos administrativos.[4]
Quando a Administração preserva o efeito de determinado ato viciado, ela não está indo de encontro ao princípio da legalidade, pelo contrário, a convalidação é a própria restauração deste princípio.
“Não brigam com o princípio da legalidade, antes atendem-lhe o espírito, as soluções que se inspirem na tranqüilização das relações que não comprometem insuprivelmente o interesse público, conquanto tenham sido produzidas de maneira inválida. É que a convalidação é uma forma de recomposição da legalidade ferida”.[5]
É o entendimento corrente na E. Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, a saber:
“Registro de Imóveis – Procedimento administrativo – Cancelamento de registro – Providência desautorizada pela Corregedoria Permanente – Decurso de tempo significativo – Situação fática consolidada – Prestígio à segurança jurídica e proteção de direitos de terceiros de boa-fé – Viabilidade de correção do vício mediante retificação (regularização fundiária) – Recurso não provido”. Processo CG n° 1019506-59.2017.8.26.0224 – Parecer nº 272/2019-E – Juíza Assessora Stefânia Costa Amorim Requena – Aprovado pelo Correg. Des. Pinheiro Franco.
Percebe-se, por fim, que a qualificação do oficial de registro deve ser independente, dentro da legalidade, o que é extremante salutar ao sistema. Trata-se de um juízo prudencial de um título prenotado numa circunscrição imobiliária, passível de reexame pelo Juízo Corregedor Permanente e C. Conselho Superior da Magistratura, em São Paulo.
Jamais as funções legislativa e administrativa prescreveriam com exatidão os títulos in concreto ao Oficial de Registro. Ademais, como bem ressaltado por Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari [3], as próprias hipóteses de registro são elencadas em um rol taxativo (LRP, art. 167, I), embora não seja exauriente, como é o caso do patrimônio de afetação rural e a promessa de permuta, no contexto da incorporação imobiliária. Outrossim, as averbações constam de enumeração exemplificativa e aberta, justamente pelo princípio da concentração dos atos na matrícula (Lei nº 13.097, de 2015, art. 54 em diante), o que garante publicidade clara e completa de informações correlacionadas aos direitos reais.
Dessa forma, na esteira dos ensinamentos de Weida Zancaner, todo ato administrativo eivado com vício de forma deve ser convalidado, excepcionalmente quando a nulidade gerar desvirtuamento da finalidade em razão da qual o procedimento foi instaurado e não seja essencial à validade do ato. A segurança jurídica e a boa-fé dos administrados é que constitui o próprio sustentáculo do princípio da legalidade.[6]
Se verifica a importância na inclusão do § 5º do art. 214 da Lei de Registro Públicos, em que há a estabilização do registro, pelo passar do tempo, de um título que não está apto ao registro. Porém, por erro está inscrito na matrícula.
Por fim, a presente modificação supletiva, perpetrada pela Lei nº 10.931, de 2004, optou por incluir o referido parágrafo e definir que a “nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel”. A estabilização dos atos e a proteção à confiança legítima de terceiros no tráfego imobiliário é uma tendência no direito registral brasileiro, outras situações de estabilização tendem a emergir da segurança jurídica objetiva ou dinâmica dos registros públicos.
[1] O teor dos verbetes é revelador: “A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos. (STF, Súmula nº 346, Sessão Plenária de 13.12.1963) “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. (STF, Súmula nº 473, Sessão Plenária de 03.12.1969)
[2] DE MELLO, Celso Antonio Bandeira. O conteúdo do regime jurídico-administrativo e seu valor metodológico. Revista de Direito Administrativo, v. 89, p. 8-33, 1967.
[3] KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado notarial e registral, ofício de registro de imóveis. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 652-653.
[4] REALE, Miguel. Revogação e anulamento do ato administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 86-87, que faz referência à obra de MAURICE HAURIOU. La Jurisprudence Administrative. 1929, v. II, p. 105 e ss.
[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de apud ZANCANER, Weida. Da convalidação e invalidação dos atos administrativos. 3ª ed., São Paulo: Malheiros Editore, 2008, p. 67.
[6] ZANCANER, Weida. Da Convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos. Malheiros Editores. 3ª Ed. – São Paulo, 2008, p. 112-114.