Artigo: O matrimônio católico e a sua influência no ordenamento jurídico brasileiro

Vitor Frederico Kümpel e Ohanna Perigo de Freitas

Apesar do Código Civil de 2002 não estabelecer uma definição precisa do que vem a ser o casamento, o art. 1.511 do referido codex prescreve que, por ele, se estabelece uma plena comunhão de vida entre os cônjuges, baseada na igualdade de direitos e deveres. Essa forma de união entre dois sujeitos – considerando a opção do ordenamento jurídico pela monogamia – possui interessante histórico, pois o casamento, enquanto instituição, foi conduzido e regulamentado ao longo dos séculos pelos costumes e moral de determinada sociedade ou determinada nação1.

Sabe-se que o matrimônio é uma instituição milenar, com origem nas sociedades primitivas, mas com forte influência cristã. Aliás, o Cristianismo modificou o próprio Direito romano a partir do Dominato (regime de governo que teve início com Diocleciano em 284 d.C.), tendo o imperador Constantino incorporado o Cristianismo como religião oficial2.

Fazendo um recorte histórico para analisar a influência e o reflexo do matrimônio cristão-católico no ordenamento brasileiro, é preciso compreender ao menos a natureza dessa instituição e suas características. Além do mais, é importante esclarecer que essa análise tem como ponto de partida o marco inicial o nascimento e morte de Cristo, fato histórico e sob o qual se fundam as bases do Cristianismo. Antes, porém, é possível encontrar na própria narrativa do Antigo Testamento a aceitação de poligamia masculina, que não era o ideal de família e que foi totalmente rechaçada por Cristo.

Segundo o Catecismo Maior do Papa Pio X3, um compêndio do Catecismo Romano, o matrimônio é, antes de tudo, um sacramento, isto é, “um sinal sensível e eficaz da graça, instituído por Jesus Cristo para santificar nossas almas”4. Em outras palavras, significa dizer que o casamento na ótica cristã é mais do que um fato social, mas uma instituição sagrada, cuja natureza é de sacramento. Um pouco mais à frente, o mesmo catecismo indica que o matrimônio é o casamento pelo qual “se estabelece uma união santa e indissolúvel5 entre o homem e a mulher”6 que só terminaria com a morte.

Esse caráter sacramental do matrimônio implica em duas consequências que são encontradas na doutrina católica: (i) o fato de não ser possível separar o contrato do sacramento, pois o casamento seria um fato natural que foi elevado a sacramento por Jesus Cristo (quarta parte, capítulo IX, art. 830); e (ii) o casamento civil ser uma mera formalidade prescrita por lei, “a fim de dar e assegurar os efeitos civis aos casados e aos seus filhos”7. Desta forma, caberia apenas à autoridade da Igreja Católica definir os impedimentos e julgar a validade dos matrimônios, desvinculando-se dos ordenamentos jurídicos de cada sociedade.

Assim sendo, a doutrina da Igreja Católica estabelece expressamente que os cristãos que permanecem unidos somente pelo casamento civil estão em união irregular e ilegítima, pois apenas o contrato civil não seria verdadeiro matrimônio, uma vez que, como apresentado acima, seria impossível separar o sacramento do contrato (quarta parte, capítulo IX, art. 850). Por outro lado, é interessante pontuar que, embora o vínculo civil seja ilegítimo, o catecismo também indica que os cônjuges devem necessariamente fazê-lo, para assegurar os efeitos civis da sociedade conjugal, confira-se:

  1. Deve fazer-se também o contrato civil?

Deve fazer-se o contrato civil, porque embora não seja ele Sacramento, serve, no entanto, para garantir aos casados e a seus filhos os efeitos civis da sociedade conjugal; eis por que, em regra geral, a autoridade eclesiástica não permite o casamento religioso quando não se cumprirem as formalidades prescritas pela autoridade civil.8

Considerando esse panorama geral da natureza e características do casamento cristão – doutrina que não sofreu alteração até o momento – fica mais fácil analisar e comparar o histórico do instituto no ordenamento jurídico brasileiro.

Da indissolubilidade

A começar pela questão da indissolubilidade matrimonial, a influência da cristandade fez com que no Brasil, e em inúmeras nações, a única hipótese capaz de extinguir o vínculo matrimonial seria a morte de um dos cônjuges, sendo permitido um novo casamento apenas com a viuvez do cônjuge supérstite. Com efeito, o caminho percorrido pelo legislador até que se chegasse ao instituto do divórcio acompanhou a mudança de concepção moral de parte da sociedade brasileira, que – convém ressaltar – em plenos séculos XVIII e XIX, não se incomodava com a ideia da indissolubilidade matrimonial.

Foi apenas com o decreto 181, de janeiro de 1890 (lei sobre o casamento civil), que a ideia de separação e de divórcio começou a ser inserida no contexto legislativo. Apesar do decreto destinar o capítulo IX aos casos de divórcio – que só poderia estar fundado em adultério, sevícia ou injúria grave, abandono do lar ou mútuo consentimento – o art. 93 do decreto estabelecia que o casamento válido só poderia ser dissolvido com a morte dos cônjuges.

Assim sendo, o que estava previsto no art. 82, embora nomeado como “divórcio”, seria uma permissão à separação de corpos, pois não possuía o condão de dissolver o vínculo matrimonial; diferente do Código Civil de 1916, que por sua vez, previa a dissolução do vínculo pela morte do cônjuge e em razão de nulidades9 (art. 315, parágrafo único).

Antes, porém, de entrar em vigor a lei do divórcio, lei 6.515, de dezembro de 1977, a sociedade conviveu com a figura do desquite, que corresponderia à separação judicial e implicava na dissolução da sociedade conjugal, ou seja, seria possível o seu restabelecimento a qualquer tempo (art. 323). Além disso, essa forma de separação dos cônjuges poderia ser litigiosa ou consensual (arts. 317 e 318, CC/16).

Chegado o ano de 1977, com a EC 9, o legislador promulgou a lei 6.515/77, permitindo a dissolução da sociedade conjugal e do casamento por meio do divórcio. Assim, o parágrafo único do art. 2º passou a prever, ao lado da hipótese da morte de um dos cônjuges, que a dissolução do vínculo matrimonial se dá por meio do divórcio, sendo necessário o registro da sentença para a produção de efeitos (art. 32 da mesma lei). Havia, contudo, dois prazos cogentes antes da decretação do divórcio: de um ano após a separação judicial; ou dois anos após a comprovação da separação de fato.

Foi com a EC 66 de julho de 2010 que esses prazos foram completamente suprimidos (art. 226 da Constituição Federal) e o divórcio passou a ser permitido sem qualquer requisito.

Da validade do casamento civil e da união estável

Como visto, seguindo a doutrina católica, os cristãos não podem se submeter apenas ao casamento civil, sob pena de viverem uma união irregular e ilegítima, mas devem se submeter a ele, a fim de que a família constituída pelo sacramento tenha assegurado os efeitos civis e os direitos decorrentes da tutela jurídica10.

Um instituto interessante que acaba por contemplar os matrimônios católicos que precisa, conforme a doutrina cristã, dos efeitos civis decorrentes da formalidade da lei11, é a que se encontra nos arts. 1.515 e 1.516 do atual Código Civil (2002): o casamento religioso pode produzir efeitos civis, desde que atenda aos requisitos de validade previstos no próprio Código e desde que seja registrado dentro de 90 dias após a celebração, ou com habilitação superveniente.

Igualmente no Brasil, por volta do início do século XX, a única forma de constituição de família ainda seria por meio do casamento civil; enquanto que outras formas de união eram tidas como “concubinato”, fortemente repudiadas pela sociedade12. O concubinato poderia ser puro se se tratasse de uma união livre entre homem e mulher sem que fosse celebrado o casamento civil; ou impuro, se os sujeitos – homem e mulher – fossem impedidos de se casarem, como era o caso de adultério e relações incestuosas13.

Atualmente, o art. 1.727 do CC/02 prevê que o concubinato é a relação não eventual entre homem e mulher com impedimento matrimonial afora a separação de fato. Aqui, a palavra “impedidos” deve ser interpretada em seu sentido técnico, então, dá-se o concubinato se estiverem presentes quaisquer das hipóteses do art. 1.521, CC/02, afora a separação de fato.

Por fim, o reconhecimento legal das uniões estáveis ocorreu em 1975, com a lei 6.216/75, que modificou a lei 6.015/76, permitindo que o convivente adotasse o patronímico do companheiro, por meio de requerimento ao juízo competente. Para tanto, o art. 57 da LRP exigia dois requisitos: a concordância expressa do companheiro; e a união por no mínimo cinco anos, ou a existência de filhos; além do impedimento matrimonial, ocasião em que o patronímico era averbado no assento de nascimento (Livro A) da companheira.

Embora singela a disposição, a partir daí as uniões estáveis entre pessoas desimpedidas passou a ser reconhecida e aceita pelo ordenamento jurídico, até que foi incluída em duas importantes normativas: no art. 226, §3º da Constituição Federal14; e no Livro IV, Título III do Código Civil atual (arts. 1.723 a 1.727).

O Direito de Família no Brasil é um dos ramos do Direito com largo histórico, em que é possível notar como o trabalho do legislador seria acompanhar os novos contornos sociais, mas sem deixar de lado as situações e contextos mais tradicionais, que se solidificaram ao longo da história como um traço importante da sociedade. E é por estar tão próximo da realidade social, dos costumes e da moral, que os institutos de Direito de Família precisam ser estudados de acordo com o seu próprio histórico e cada momento da sociedade, que por vezes deseja viver exclusivamente de acordo com suas convicções religiosas.

Sejam felizes!

1 V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, vol. 2, 2ª ed., São Paulo: YK Editora, 2022, p. 624.

2 J. C. Moreira Alves, Direito Romano, 18ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2018, p. 78.

3 Igreja Católica. Papa Pio X (1903-1914). Catecismo Maior de São Pio X: terceiro catecismo da doutrina cristã. Rio de Janeiro: Editora Permanência, 2010.

4 Igreja Católica. Papa Pio X (1903-1914). Catecismo Maior…, cit. (nota 3 supra) p. 93.

5 Ressaltando a observação feita no início deste artigo, o recorte histórico leva em conta a história do Cristianismo a partir do nascimento de N. Sr. Jesus Cristo, pois é possível encontrar no Antigo Testamento um permissivo em que se permitia repudiar a esposa por meio de uma carta de divórcio (vide no A.T. Deuteronômio, capítulo 24, versículos 1-4; e os evangelhos de Mateus, capítulo 19, versículos 3-19 e de Marcos, capítulo 10, versículos 2-12).

6 Quarta parte, capítulo IX, art. 826 (Igreja Católica. Papa Pio X (1903-1914). Catecismo Maior…, cit. (nota 3 supra) p. 132).

7 Quarta parte, capítulo IX, art. 849 (Igreja Católica. Papa Pio X (1903-1914). Catecismo Maior…, cit. (nota 3 supra) p. 135).

8 Quarta parte, capítulo IX, art. 849 (Igreja Católica. Papa Pio X (1903-1914). Catecismo Maior…, cit. (nota 3 supra) p. 136)

9 V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado…, cit (nota 1 supra), p. 244

10 Quarta parte, capítulo IX, art. 849 (Igreja Católica. Papa Pio X (1903-1914). Catecismo Maior…, cit. (nota 3 supra) p. 136).

11 Segundo o art. 848 do Catecismo católico, o casamento civil é apenas uma formalidade prescrita por lei para os cidadãos, a fim de dar e assegurar os efeitos civis aos casados (Igreja Católica. Papa Pio X (1903-1914). Catecismo Maior…, cit. (nota 3 supra) p. 135).

12 V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado…, cit (nota 1 supra), p. 242.

13 V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado…, cit (nota 1 supra), p. 242.

14 “§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

Fonte: Portal Migalhas