A recente decisão da Justiça de São Paulo, que concedeu a uma mãe acesso aos dados do celular da filha falecida, aqueceu o debate sobre herança digital. A questão vem à tona após a entrega do anteprojeto de reforma do Código Civil, que sugere a inclusão de uma parte específica sobre direito digital na norma.
No caso em questão, a mãe pleiteava a expedição de alvará judicial para obter o desbloqueio do aparelho celular da filha. A sentença de primeiro grau julgou o pedido improcedente, sob o argumento de que, ao inexistir autorização deixada em vida pela pessoa que faleceu, a concessão de acesso seria uma violação de privacidade.
A mãe interpôs apelação, alegando ser a única herdeira da filha, fazendo jus, portanto, aos bens deixados por ela, o que abrangeria o acervo digital de dados. Alegou, ainda, que os arquivos digitais consistem em bens móveis contemplados pelo Código Civil, que alude às “energias que tenham valor econômico”. E, como bens, deveriam ser transmitidos à herdeira.
A 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP deu provimento ao recurso por entender que não havia, no caso concreto, justificativa para “obstar o acesso da única herdeira às memórias da filha falecida” e que não havia, nos autos, “qualquer indício de que isso violaria direitos da personalidade”.
Novo paradigma
Tabeliã de notas em São Paulo, Priscila de Castro Teixeira Pinto Lopes Agapito, presidente da Comissão de Notários do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, e a tabeliã de notas em Santo André, Flávia Gentil, membro do Instituto, avaliam que a decisão traz um novo paradigma para a Justiça brasileira, uma vez que o tema da herança digital ainda não é regulamentado no Brasil. Elas respondem em conjunto.
“Nos casos não autorizados expressamente, deverão as partes recorrer à via judicial, por meio de alvará, para que tenham acesso à privacidade digital do falecido, até mesmo em proteção aos termos de uso assinados perante as plataformas digitais”, elas comentam.
Ainda assim, elas defendem cautela em lidar com casos semelhantes, já que a privacidade da pessoa falecida deve ser preservada, a não ser que ela tenha, em vida, autorizado a liberação dos seus dados, fotos e mensagens pessoais. Caso contrário, não há o que justifique a liberação do patrimônio aos herdeiros.
“Certamente, ainda haverá muita discussão, porque cada caso é um caso e sempre entrará em jogo a preponderância dos direitos: a privacidade da pessoa que partiu versus o interesse dos herdeiros ao conteúdo. Caso seja um conteúdo econômico, a situação é mais simples, porque de fato é um patrimônio a ser partilhado. Quando são questões de caráter pessoal, há que se obedecer e respeitar irrestritamente a vontade do falecido. Cremos que ainda falta muito para termos uma jurisprudência consolidada”, afirmam.
Direito Digital no Código Civil
No anteprojeto de reforma do Código Civil entregue ao Senado, em abril passado, a Comissão de Juristas propôs a inclusão de uma parte específica sobre Direito Digital, estabelecendo direitos e a proteção às pessoas no ambiente virtual.
A proposta define patrimônio digital como os perfis e senhas de redes sociais, criptomoedas, contas de videogames, fotos, vídeos, textos e milhas aéreas. Tais bens podem ser herdados e descritos em testamento.
A sugestão da Comissão de Juristas ainda prevê que os sucessores legais podem pedir a exclusão ou conversão em memorial dos perfis em redes sociais de pessoas falecidas.
Entregue ao presidente do Senado, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o anteprojeto pode acolher as propostas integralmente ou parcialmente, além de poder sugerir mudanças no texto. Depois disso, ele será o responsável por protocolar a proposta, que passa a ser um projeto de lei, o que dará início à discussão pelos senadores.
“O tema da herança digital é um desafio ao Direito brasileiro”, avaliam as tabeliãs. ”Não temos ainda, no Brasil, uma legislação específica quanto ao assunto, somente projetos de lei. Diante disso, as empresas responsáveis pelas plataformas acabam regulamentando o uso, com a finalidade de proteger os seus usuários e cumprir a lei de proteção de dados.”
A exemplo do caso que chegou ao TJSP, que diz respeito à liberação de senha de acesso, elas reiteram que a autorização deve estar expressa por meio de um testamento, codicilo ou diretiva antecipada de vontade para o caso de incapacidade.
“É necessário verificar caso a caso. Recomendamos fortemente que todas as pessoas que fazem uso de redes sociais, e/ou que tenham patrimônio digital, procurem o seu tabelião de notas de confiança e produzam o instrumento mais adequado para o seu caso: um codicilo, um testamento ou uma diretiva antecipada de vontade. Com esses instrumentos não haverá necessidade de judicialização da causa”, elas afirmam.
Apelação 1017379-58.2022.8.26.0068
Fonte: Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)