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AFG e hipoteca no âmbito de imissão provisória na posse

Vitor Frederico Kümpel e Natália Sóller

A lei 14.620/2023 introduziu a imissão provisória na posse decorrente do procedimento judicial de desapropriação por utilidade pública (art. 15 do decreto-lei 3.365/1941) no rol dos direitos reais do Código Civil, elencando-a no inciso XIV do art. 1.225. Além disso, permitiu que o mesmo direito se torne objeto tanto de hipoteca, pelo art. 1.473, XI, do Código Civil, quanto de alienação fiduciária em garantia, nos termos do art. 22, §1º, V da lei 9.514/1997, gerando um ativo econômico. Assim, a imissão provisória na posse passou a figurar entre os direitos reais e estar apto a ser hipotecada ou alienada fiduciariamente em garantia pelo ente público.

Em coluna anterior, discorreu-se acerca da natureza jurídica desse direito de imissão provisória na posse decorrente de desapropriação; adotou-se o posicionamento de que a transmissão da propriedade na desapropriação ocorre no instante do pagamento inicial pelo ente público, de sorte a considerar que a imissão provisória na posse, na verdade, não goza da provisoriedade atribuída pelo legislador de 19411.

Ocorrendo a transferência com o pagamento, autoriza-se a imissão do ente público na posse do bem, já de forma definitiva, visto que não haverá a possibilidade, por regra, de desistência da desapropriação, correndo em juízo apenas discussões posteriores sobre a complementação do pagamento ou outras questões, e não mais sobre a efetivação da desapropriação em si. Parece que o termo “imissão provisória” foi mantido nas inserções realizadas pela lei 14.620/2023 por se alinhar ao texto do decreto-lei 3.365/1941, porém, os direitos dela oriundos já advêm da transmissão da propriedade efetivada com o pagamento.

Nesse sentido, o título de imissão na posse (que é definitivo) serve para permitir a regularização dos direitos para o ente público, inclusive com abertura de matrícula, antes de se aguardar a sentença final e a carta de adjudicação do bem. Assim, o ente público não aguardará o término do processo para ter um título hábil para ingresso no Registro de Imóveis e potenciais direitos de garantia decorrentes.

Neste artigo, analisar-se-á com mais detalhes o funcionamento da alienação fiduciária em garantia e hipoteca na imissão provisória.

Na hipoteca ou na AFG ocorre a concessão de um crédito pelo titular de direitos, recebendo em garantia pelo devedor um direito real sobre um bem. Parece, nesse sentido, que o maior objetivo da inserção do direito real de imissão provisória na posse no rol de direitos hipotecáveis ou alienáveis fiduciariamente é a obtenção de crédito ao Poder Público para a realização de obras ou serviços de interesse social e um incentivo à circulação econômica dos bens.

O Poder Público pode se utilizar do próprio bem desapropriado para conseguir um crédito para o empreendimento a ser ali desenvolvido, dando-o em garantia às instituições financeiras sem comprometer outro ativo público. Isso facilita, inclusive, a consecução de obras e investimentos necessários para dar cumprimento à finalidade para qual o bem foi desapropriado.

Além disso, o bem desapropriado pode ter melhor circulação no mercado, na medida em que o registro do direito real em nome do Poder Público possibilita que ele seja manejado nas relações jurídicas antes da regularização ou abertura da matrícula (que ocorre antes do término do processo expropriatório).

Contudo, como já dito, o grande sentido da concessão do crédito é que a instituição financeira tenha uma garantia para a hipótese de inadimplemento por parte do devedor, a qual será executada para fins de quitação do crédito. Assim, a possibilidade de dar em garantia o direito real de imissão na posse apenas reforça a tese de que a propriedade já se transmitiu ao Poder Público.

Se considerar-se a possibilidade de desistência da desapropriação pelo ente público entre o período da concessão de imissão provisória na posse e a sentença do processo judicial, esses direitos hipotecados ou alienados fiduciariamente poderiam ser perdidos e, consequentemente, inexistira a garantia dada na hipoteca ou na alienação fiduciária. Em outras palavras, se a propriedade do bem expropriado se transmitisse apenas ao fim do processo judicial e se permite ao ente público a possibilidade de desistência da desapropriação após a imissão provisória na posse, a alienação desses direitos decorrentes da imissão poderia ser desconstituída com a desistência.

Eventual desistência e desconstituição dos direitos da imissão na posse faria com que, consequentemente, se desconstituísse também a garantia da hipoteca ou da alienação fiduciária; assim, novamente ocorreria uma incongruência no sistema, fugindo-se do objetivo do instituto de concessão de crédito com garantia para a instituição financeira.

Por outro lado, é ainda necessário considerar os impactos da hipótese de não pagamento do crédito pelo Poder Público. Caso os valores concedidos pelas instituições financeiras não sejam adimplidos, justamente, o direito real dado em garantia será executado em favor do credor.

A partir disso, questiona-se: pode esse bem, que é patrimônio público já com uma destinação específica para fins de desapropriação, ser normalmente executado? Em caso de hipoteca, o bem iria à hasta pública, podendo ser adquirido por particulares em leilão; em AFG, o bem seria consolidado em favor do credor e também seguiria para o procedimento de leilão a particulares.

É necessário avaliar como seria compatibilizada essa garantia com a necessidade de cumprimento da finalidade da desapropriação. Logicamente, a probabilidade de inadimplemento por parte do Poder Público é baixa, por isso, não se deve ter considerado essa hipótese quando da elaboração da Lei nº 14.620/2023; contudo, ainda que remota, essa possibilidade pode gerar uma incongruência no sistema.

Se houver a necessidade de execução da garantia, o texto legal protege o credor – dentro da lógica das garantias -, mas acaba gerando a possibilidade de descumprimento da finalidade pública da desapropriação.

Uma primeira saída seria vincular o adquirente do bem executado ao cumprimento da mesma finalidade pública para a qual o bem foi desapropriado, forçando-o a desempenhar a atividade a que seria destinado. Essa situação, contudo, parece realmente inviável, na medida em que burla o sistema de prestação de serviços públicos, tornando possível que um particular desenvolva o serviço apenas em razão da aquisição do bem – pulando procedimentos obrigatórios, como a licitação, por exemplo -, além de, ao mesmo tempo, desestimular a aquisição do bem em leilão por particulares diversos que têm interesse tão somente na propriedade do imóvel.

Poder-se-ia viabilizar, contudo, que à instituição financeira, ao executar o imóvel, fosse permitida a realização de um procedimento licitatório ou de contratação de parceria público-privada, para que aquele serviço continuasse a ser prestado, só que não diretamente pelo Poder Público. Seria o caso, por exemplo, de uma rodovia que foi construída e executada para que se instalasse o sistema de pedágio, e os valores arrecadados seriam pagos à instituição financeira até a quitação do débito.

Outra solução, aplicável às situações em que essa execução seja inviável, como o caso de imóvel utilizado para uma escola ou posto de saúde, seria determinar que o Poder Público apresentasse outros ativos para a execução, em substituição àquele bem desapropriado, de mesmo valor e interesse econômico. Assim, o credor não seria prejudicado pela impossibilidade de executar sua garantia e o Poder Público tampouco seria prejudicado pela perda do bem que havia sido desapropriado para cumprir com um interesse social que não pode ser prestado pela iniciativa privada ou por parcerias.

Contudo, entende-se que, nesse caso, deveria haver uma cláusula contratual, na hipoteca ou alienação fiduciária em garantia, que permita a sub-rogação posterior, para que não se siga o procedimento legal da execução.

O mesmo seria necessário a uma outra solução, para que o direito ao crédito seja sub-rogado em precatórios. Parece possível inserir no contrato que o bem dado em garantia não seja executado, a fim de preservar o interesse público, e que o crédito se desse em precatórios, como nas situações gerais de dívidas da Administração. Contudo, esse cenário não é muito positivo para a instituição financeira, que teria que aguardar anos para obter o pagamento do crédito concedido.

Faz-se necessário aguardar as aplicações práticas e o funcionamento do direito real de imissão provisória na posse dado em garantia para se verificar quais serão os efeitos gerados e as eventuais novas soluções adotadas pelo legislador.

Sejam felizes!


1 Disponível aqui.


*texto retirado do Portal Migalhas.